A Missão Divina
Redação (14/05/2014, Virgo Flos Carmeli) Toda a verdade católica a respeito da Santíssima Trindade seria ignorada pelos homens se Deus não a tivesse revelado em sua bondade infinita. Mas, como Deus faz tudo com absoluta perfeição, o próprio modo de revelar o mistério trinitário é sumamente belo.
Ele revelou-Se plenamente ao enviar seu próprio Filho: “Tanto amou Deus o mundo, que lhe enviou o seu Filho Unigénito, a fim de que todo o que nele crê não se perca, mas tenha a vida eterna” (Jo 3, 16). Esse envio do Filho feito pelo Pai deu-se na plenitude dos tempos, quando o Verbo se encarnou no seio puríssimo de Maria Santíssima (cf Gl 4,4). Ao chegar a hora de sua glorificação pela Paixão, Morte e Ressurreição, Jesus prometeu enviar o Espírito da verdade que procede do Pai (cf Jo 15, 26), para dar testemunho d’Ele.
O envio do Filho feito pelo Pai, e o do Espírito Santo feito em conjunto pelo Pai e pelo Filho, chama-se missão divina, que é uma nova forma de presença de alguma Pessoa Divina no mundo, no tempo. Claro que o Filho e o Espírito Santo agiam sempre junto com o Pai no mundo, pois existem eternamente. Mas, com a missão divina, Eles participam de um modo especial na obra da salvação.
A missão de uma Pessoa Divina implica dois elementos: a relação do Enviado com Aquele que O envia, e o lugar para onde é enviado. Evidentemente, a missão divina não tem nenhuma das imperfeições do agir humano. Quem envia não tem império ou superioridade sobre o Enviado, dada a igualdade absoluta das Pessoas Divinas em dignidade e perfeição. A única distinção é a processão de origem.[1] E para Quem é enviado, a missão não significa que Ele não estivesse lá antes ou que Ele tivesse mudado de lugar, pois as Pessoas Divinas sempre estão presentes e em toda a parte.[2]
E aqui está um grande tesouro do mistério trinitário: pelas missões divinas Deus manifestou sua vida íntima. O envio do Filho pelo Pai indica a eterna processão do Verbo no seio de Deus; e o envio do Espírito Santo pelo Pai e pelo Filho indica a eterna processão de Ambos. Ademais, como a missão manifesta o conceito de procedência de outro, compreende-se que não corresponda ao Pai ser enviado, já que não procede de outra Pessoa Divina, mas somente ao Filho e ao Espírito Santo.[3]
Pode-se, ainda, distinguir entre missão visível e invisível. Na visível, uma Pessoa Divina é percebida pelos sentidos humanos: o Filho, em Jesus Cristo, e o Espírito Santo, na forma de pomba no Batismo de Jesus e nas línguas de fogo, em Pentecostes. A invisível se refere à inabitação das Pessoas na alma, pela graça santificante. O Filho e o Espírito Santo são enviados invisivelmente à alma, e junto com Eles vem o Pai para inabitá-la. “Se alguém Me ama, guardará a minha palavra e meu Pai o amará, e Nós viremos a ele e nele faremos nossa morada” (Jo 14, 23).
Porém, por mais que o Pai não tenha nenhuma missão divina, isso não quer dizer que onde está o Filho ou o Espírito Santo não esteja também o Pai, já que as Três Pessoas Divinas são inseparáveis.[4]
Circumincessio: o íntimo relacionamento das Pessoas Divinas
O Pai, o Filho e o Espírito Santo estão numa contínua e eterna interrelação. Assim, cada uma das Pessoas está inteiramente nas outras duas; isto em Teologia recebe o nome de circumincessio (em latim), ou também perichoresis (em grego), que nada mais é que o relacionamento entre as Três Pessoas Divinas.
A respeito disso, explica o Catecismo: “Nos nomes relativos das Pessoas, o Pai é referido ao Filho, o Filho ao Pai, o Espírito Santo aos dois; quando se fala dessas Três Pessoas considerando as relações, crê-se, todavia, numa só natureza ou substância. Pois tudo é uno n’Eles, onde não se encontra a oposição de relação. Por causa dessa unidade, o Pai está todo inteiro no Filho, todo inteiro no Espírito Santo; o Filho está todo inteiro no Pai, todo inteiro no Espírito Santo; o Espírito Santo, todo inteiro no Pai, todo inteiro no Filho”.[5]
A circumincessio é ao que Nosso Senhor se refere quando diz: “O Pai está em Mim, e Eu no Pai” (Jo 10, 38). Do mesmo modo, ao ser indagado por Felipe que queria ver o Pai, Jesus respondeu: “Não acreditas que Eu estou no Pai e o Pai está em Mim? As palavras que Eu vos digo não as digo por Mim mesmo, mas é o Pai que, permanecendo em Mim, realiza suas obras. Crede-Me: Eu estou no Pai e o Pai está em Mim. Crede, ao menos, por causa destas obras” (Jo 14, 10-11).
Pela circumincessio as Pessoas Divinas se relacionam constante e mutuamente, e pela inabitação da Santíssima Trindade esse misterioso e divino relacionamento se realiza ininterruptamente dentro da alma em estado de graça.
E Nosso Senhor quer que estejamos n’Ele à semelhança de como Ele está no Pai. Por isso rezou ao Pai: “Que eles [os Apóstolos e todos os fiéis] estejam em Nós, a fim de que o mundo creia que Tu Me enviaste. Eu lhes dei a glória que Tu Me deste, para que eles sejam um, como Nós somos Um: Eu neles, e Tu em Mim, para que sejam perfeitamente unidos, e o mundo conheça que Tu Me enviaste e os amaste como amaste a Mim (Jo 17, 21-23)”. Essas últimas palavras, pronunciadas pelos lábios divinos poucos momentos antes de se dirigir ao Horto de Oliveiras a fim de iniciar a Paixão, são de uma profundidade e grandeza sem fim, pois revelam a que altura sobrenatural o Batismo nos eleva.
“Estão, na alma justificada, as Três Divinas Pessoas engendrando-a sobrenaturalmente, vivificando-a com sua própria vida, introduzindo-a pelo conhecimento e pelo amor no mais fundo de suas íntimas relações. Aí o Pai engendra realmente o Filho, e do Pai e do Filho procede realmente o Espírito Santo, realizando-se dentro da alma este sublime mistério da unidade trina e da trindade una, que é a própria vida de Deus”.[6]
Por isso, São Gregório Nazianzeno assim preparava seus catecúmenos para o Batismo desta forma: “Antes de tudo, conservai este bom depósito, pelo qual vivo e combato e que desejo ter como companheiro ao morrer, e que me faz suportar todos os males e desprezar todo prazer: a profissão de fé no Pai e no Filho e no Espírito Santo. Eu vo-la confio hoje, é por ela que vou mergulhar-vos na água daqui a pouco e vos tirar dela. Eu vo-la dou como companheira e dona de toda a vossa vida: dou-vos uma só Divindade e Poder, que existe Una nos Três, e que contém os Três de maneira distinta, sem disparidade de substância ou natureza, sem aumento ou diminuição pelas superioridades ou inferioridades, iguais em tudo, em tudo o mesmo, como a beleza e a magnitude dos céus é uma, a infinita conaturalidade é de três infinitos. Cada um considerado em si mesmo é Deus todo inteiro, como o Pai, assim o Filho, como o Filho, assim o Espírito Santo, um só Deus os Três considerados juntos. […] Nem comecei a pensar na Unidade, e a Trindade me banha em seu esplendor. Nem comecei a pensar na Trindade, e a Unidade toma conta de mim”.[7]
Por isso o Prof. Plinio Corrêa de Oliveira afirmava que “se tivéssemos uma noção bem clara das relações entre as pessoas da Santíssima Trindade, encontraríamos a imagem e semelhança das relações trinitárias nas relações dos seres entre si.
“O Universo, que não é constituído por seres vizinhos, mas relacionados, articulados, forma uma imensa coleção. Este aspecto arquitetônico seria mais bem compreendido se, a partir das relações das Três Pessoas da Santíssima Trindade, se fizesse todo o panorama de como são as relações entre os seres, no Universo”.[8]
Pentecostes, luz sobre o mistério trinitário
Porém, todas as afirmações do Divino Mestre antes da Paixão não eram suficientes para iluminar a mente dos que O escutavam. Arraigados às tradições de seus antepassados, não podiam compreender a existência da Trindade, de Pessoas em Deus, com a clareza e naturalidade com a qual uma criança hoje é capaz de confessar essa altíssima verdade, simplesmente ao fazer o Sinal da Cruz, antes de adormecer: Em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo.
Após a Ressurreição, numa de suas aparições aos Discípulos, Nosso Senhor Jesus Cristo se referiu de modo totalmente claro e inequívoco à Trindade, quando lhes ordenou: “Ide, pois, e ensinai a todas as nações; batizai-as em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo” (Mt 28, 19). Mas só mesmo com a descida do Paráclito, em Pentecostes, que os olhos da alma se abriram para entender as palavras que o Salvador lhes havia dito. “Todo fruto do sacrifício redentor foi recolhido em Pentecostes. Merecendo sua glorificação, Cristo mereceu para os homens a eficácia do Espírito Santo, efusão através da qual recebemos a salvação, a remissão dos pecados e a santificação”.[9]
Essas palavras contêm a fórmula mais explícita sobre o mistério da Trindade, porque o próprio Jesus quando manda batizar “em nome”, portanto no singular, afirma a existência de um Deus em três Pessoas: Pai, Filho, e Espírito Santo em uma só unidade substancial. Ao mesmo tempo, estas três Pessoas são distintas entre Si, como notamos ao Jesus dizer cada nome das Pessoas Divinas precedidas pelo artigo que as personaliza.[10] Dessa forma fica evidente a existência da Santíssima Trindade.
Diante de todo esse belo e misterioso panorama revelado por Nosso Senhor Jesus Cristo, cabe-nos aspirar, já nesta vida, ao convívio eterno com a Trindade no Céu, cantando a sua glória, como Santo Agostinho em sua oração: “Quando chegarmos à tua presença cessará o muito que dissemos sem entender, e Tu permanecerás tudo em todos (cf 1Cor 15, 28). E então eternamente cantaremos um só cântico, louvando-Te num só movimento, em Ti estreitamente unidos”.[11]
FIM
Extraído de “A vida íntima de Deus Uno e Trino“.
[1] Processão de origem é o termo utilizado pela Teologia para designar a eterna geração do Filho pelo Pai, e a espiração do Espírito Santo pelo Pai e pelo Filho em conjunto. O tema será explicado mais detalhadamente ao longo deste volume, sobretudo no artigo tal, pág. tal.
[2] Cf São Tomás de Aquino. Suma Teológica. I, q. 43, a. 1.
[3] Cf Idem, I, q. 43, a. 4.
[4] Cf Antonio Royo Marín. Dios y su obra. Madrid: BAC, 1963, p. 330.
[5] Catecismo da Igreja Católica, 255. As expressões teológicas empregadas nesta citação serão convenientemente aprofundadas no artigo tal, pág. tal.
[6] Antonio Royo Marín. Dios y su obra. Madrid: BAC, 1963, p. 334.
[7] São Gregorio Nazianzeno, Oratio, XV, 41.
[8] Plinio Corrêa de Oliveira. Conferência. São Paulo, 31 ago.1983. Arquivo ITTA-IFAT.
[9] José Antonio Sayés. La Trinidad: Misterio de Salvación. Madrid: Palabra, 2000, p. 102.
[10] Cf Gonzalo Lobo Méndes. Deus uno e Trino. Lisboa: Diel, 2006, p. 128.
[11] Santo Agostinho. A Trindade. São Paulo: Paulus, 2008, p. 557.