Estando a questão em aberto, pois o dogma ainda está nos possíveis de Deus, escolha o leitor o que a piedade mais lhe fala ao coração…
Amor de mãe
Redação (08/06/2010, Virgo Flos Carmeli) Nada na ordem da criação reflete mais o amor de Nossa Senhora por cada um de nós, quanto o amor de uma mãe por um filho.
Para esta, não existe barreiras que a impeça de estar junto a seu filho, para cumulá-lo de carinho, desvelo, e impedir que lhe aconteça algum mal. Nem mesmo a doença os pode separar. Há casos de mães que chegam a ficar trinta e seis horas ao lado seus filhos, sem sequer sair para comer ou dormir, abandonando apenas o leito quando cessa o perigo da doença. Isso sem falar de terapias, que usam sua voz para trazer alguém em estado de coma à lucidez dos sentidos… tal é o poder terapêutico do amor de uma mãe por um filho.
Amor de Nossa Senhora por Nosso Senhor
Ora, se isso acontece com o comum das mães, como não será com Nossa Senhora em relação a seu Divino Filho? O que não terá sentido a Mãe das mães, ao gestar o “bendito fruto de seu ventre” (Lc 1, 18)? As diversas manifestações de Nosso Senhor durante a mesma gestação, a infância de Jesus, os trinta anos de convívio com Ele, o que não terá produzido em seu coração e em sua alma? Ela, que foi predestinada desde toda a eternidade para ser a Mãe de Deus[1]? Esses mistérios insondáveis, nós só os vislumbraremos – totus sed non totaliter – na Visão Beatífica.
Ausência de Nosso Senhor na terra
Certo é que, no momento em que todos abandonaram o Divino Redentor, Nossa Senhora não abandonou, e até no momento trágico e lancinante da Crucifixão e morte, Ela esteve junto a seu Filho.
Após a Ressurreição e a Ascensão, enquanto Nossa Senhora, custodiada por São João Evangelista, iluminava os homens com sua augusta presença, é de se pensar quanto não terá Ela sofrido com a ausência física de Nosso Senhor Jesus Cristo na terra…
Nossa Senhora morreu ou não?
Nessa perspectiva, podemos conjecturar se não seria lógico que, após dolorosa separação entre Mãe e Filho, Ela quisesse se unir a Ele na eternidade, passando desta vida à outra, pelo mesmo caminho por Ele traçado: a morte.
Entretanto, não há nos Evangelhos relatos a este respeito, seja do lugar, das circunstâncias, etc. O que se supõe, vem-nos através da Tradição. Inclusive, a crença antiga atribui dois locais distintos para designar o lugar em que se deu tal morte. Não se pode ter uma certeza sobre esta questão, pois a Igreja ainda não se pronunciou sobre ela, de maneira que a dúvida continua assaltando o espírito dos fiéis: afinal, Nossa Senhora morreu ou não?
Argumentos a favor e contra
Muitos são os que discutem sobre a questão, alguns a favor da morte de Maria, outros contra. Não faltam argumentos, na sua maioria de peso de ambas as partes. Eis uma visão, à la vole d’oiseau, do problema, e de alguns argumentos sustentados pelos teólogos:
Os teólogos que sustentam a tese a favor da morte de Maria têm, em seu arsenal de argumentos, o apoio da maioria dos relatos da Tradição, da festa litúrgica do Trânsito de Maria, dos Santos Padres, e também de teólogos luminares na Igreja, como por exemplo, São Tomás de Aquino, que afirmava ser a carne da Virgem concebida em pecado original e, por isto, contraiu tais deficiências (S. Th. III, q. 14,a. 3 ad 1)[2], entre elas, a morte.
O testemunho de Santo Efrém († 373), o primeiro a falar desta questão, é também relevante: “Virgem, ela o deu à luz, e fica incólume em sua virgindade; (…) Ela é virgem, e assim morre, sem que sejam violados os selos de sua virgindade”.[3]
Outro argumento usado na contenda é o de Santo Agostinho (†430) comentando a passagem do Evangelho de São João (19, 27)[4]: “Confia ele sua Mãe ao discípulo, pois havia de morrer antes de sua Mãe Aquele que havia de ressuscitar antes que sua Mãe morresse”.[5]
Acrescentando “mais lenha à fogueira”, os teólogos apelam à razão teológica em relação à morte de Maria: “morreu por exigências de sua maternidade divino-co-redentora; para exemplo e consolo nosso; [e também] Maria superior a Cristo no que diz respeito à morte corporal?” [6]
Não faltariam testemunhos a favor da morte de Maria, como o da Liturgia – cuja origem remete ao séc. VII –, da Teologia Medieval, etc. Mas, basta este elenco – que de si, já é bastante forte – para se ter uma noção de qual a sua postura.
A outra corrente teológica baseia-se, entre outros, nos argumentos de conveniência, por exemplo, este: como em conseqüência da Maternidade Divina está a exemplaridade de Maria, ou seja, como “Maria é, em todos os domínios, a realização primeira e exemplar dos dons que são espalhados na Igreja, o tipo da Igreja” [7], todos os privilégios que os Anjos e santos tiveram ou terão, e que convêm a Nossa Senhora, Ela os teve, em grau insondavelmente maior que todos eles. Ora, consta que os últimos fiéis no fim dos tempos não experimentarão a morte[8], e passarão desta vida à outra sem morrer, devido às grandes tribulações por eles sofridas, portanto, é arquitetônico que Nossa Senhora também tenha esse privilégio, pois nenhum sofrimento se compara ao d’Ela aos pés da Cruz.[9]
Outro ponto: se a mortalidade é uma carência de um dom concedido anteriormente a Adão, carência esta que é efeito de um castigo pelo pecado cometido, como pode Nossa Senhora estar desprovida deste dom?[10]
Outro argumento teológico utilizado na discussão diz: Maria tinha o direito de não morrer em virtude de sua Imaculada Conceição, que a preservou da culpa e da pena anexa a esta, que é a morte.[11]
Explicando melhor, com a sentença dada por Deus, “morrerás” (Gn 2, 17), o homem foi despojado do dom gratuito da imortalidade, ficando reduzido ao estado de pura natureza. Neste, o processo normal tende inevitavelmente à morte e nela se desfecha; entretanto, o que seria natural em outra ocasião, agora é penal, por causa do pecado. A questão está em provar o porquê se encontrava Maria na condição de mortalidade quando esta condição é exclusivamente um castigo para os homens devido ao pecado.
Os próximos argumentos do teólogo Pe. Jugie são deduções da Tradição: “Até fins do século VI se desconhecia em Jerusalém a existência de um sepulcro da Virgem, ainda que a partir de fins do século V se mostrou em Getsêmani uma casa de Maria, de onde se diz que Ela foi levada ao Céu”.[12]
“No princípio, em um círculo mais restrito de fiéis, houve uma verdadeira tradição oral [que se remonta a São João] sobre o modo com que Maria passou desta terra ao céu. Mas é necessário notar que essa tradição, conhecida por muito poucos, se obscureceu muito rápido, ainda mesmo na Palestina, a tal ponto que o palestino São Epifânio não tem dela a menor lembrança”.[13]
A Igreja não definiu a questão
Para ver o quanto a questão é complicada, basta dizer que até os escritores mais antigos abordavam o assunto com delicadeza, não ousando se pronunciar sobre o tema, por risco de serem alvo de censura. É o que expressa Santo Epifânio (315-403): “A Sagrada Escritura não diz se Maria morreu, se foi sepultada ou se não foi sepultada… Conservou absoluto silêncio por causa da grandeza do prodígio, a fim de não deixar assombrados os espíritos dos homens. Quanto a mim, não ouso falar disso. Conservo a questão em minha mente e me calo”. [14] E acrescenta mais adiante: “(…) Com efeito, a Sagrada Escritura se colocou acima dos espíritos dos homens e deixou este ponto, na incerteza por reverência a essa Virgem incomparável, a fim de evitar conjetura baixa e carnal a respeito de Maria. Morreu? Não o sabemos”.[15]
Subiu aos Céus em corpo e alma
Poder-se-ia trazer a lume inúmeros argumentos de as ambas correntes, e mostrar como o assunto é por demais polêmico e difícil de ser resolvido. Todos, entretanto, são unânimes em afirmar que Maria Santíssima foi Assunta aos Céus em corpo e alma, que se deu de fato a glorificação de ambos. Porém, a Santa Madre Igreja, não querendo entrar em pormenores anteriores à inegável Assunção da Santíssima Virgem, ou seja, de como este fato se deu, se através da morte e ressurreição, ou se foi transladado imediatamente desta vida à celeste, por um leve sono, assumindo ainda em vida um corpo glorioso, se expressou da seguinte maneira por Pio XII na Bula Muficentissimus Deus, n°18: “(…) para credenciar a glória dessa mesma augusta Mãe e para o gáudio e a alegria de toda a Igreja (…) pronunciamos, declaramos e definimos ser dogma revelado por Deus que a Imaculada Mãe de Deus, a sempre Virgem Maria, terminado o curso da vida terrestre foi Assunta em corpo e alma à Glória Celestial.” [16]
Assim, prescindindo intencionalmente, quer do fato da “morte”, quer da “não morte”, e apenas se limitando ao fato da Assunção da Santíssima Virgem à glória celeste, a Igreja, acolhendo todos os anseios de séculos de piedade cristã, se mantém numa posição equilibrada, neutra e prudente, dando a verdadeira impostação de espírito para a questão de uma forma sábia encantadora: Dormitio Beatae Mariae Virginis – o sono da Santíssima Virgem.
Anderson Carlos de Oliveira – 3º Ano de Teologia
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
AQUINO, São Tomás de. Suma Teológica. vol. 8. Loyola: São Paulo, 2002.
BERRIZBEITIA, Francisco. Aula de Mariologia ministrada para a turma Santo Alberto Magno, no Instituto Teológico Tomás de Aquino, em 06/05/2010.
BETTENCOURT, Estevão Tavares de, O. S. B. Curso de Mariologia. Escola “Mater Ecclesiae”. Rio de Janeiro, 1997.
BOVER, José M., S.J; ALDAMA, José Antonio de, S.J; SOLA, Francisco de P., S.J. LA ASUNCION DE MARIA: Estudio teológico histórico sobre la Asunción corporal de la Virgen a los cielos. 2 ed. B.A.C.: Madrid, 1961.
CLÁ DIAS, Mons. João S. Pequeno Ofício da Imaculada Conceição Comentado. Artpress: São Paulo, 1997.
JUGIE, P. Martín. La mort et l’Assomption de La Sainte Vierge: Étude historicodoctrinale. Città del Vaticano, 1944.
LAURENTIN, René. A Questão Marial. Traduzido por P. Manuel Alves da Silva, S. J. Edições Paulistas: Lisboa, 1967.
NICOLAS, Auguste. La Virgen Maria y el plan Divino. t. II.
ROYO MARIN, Fr. Antonio, O. P. La Virgen Maria: teología y espiritualidad marianas. B.A.C: Madrid, 1961.
[1] (Cf. NICOLAS, p. 65; apud CLÁ DIAS, 1997, p. 323)
[2](Cf. AQUINO, 2002, p. 256) “Caro Virginis concepta fuit in originali peccato; et ideo hos defectus contraxit.”– Cabe ponderar que São Tomás não podia saber da promulgação do dogma da Imaculada Conceição (8/12/1856), do contrário, se retrataria. Ademais, não tinha noção do argumento da “Redenção Preventiva”, elaborada posteriormente por Duns Scoto (†1308). A perplexidade do Aquinate dizia respeito à impossibilidade de concordância entre esse singular privilégio de Maria e o dogma da Redenção universal de Cristo.
[3] (Cf. Hino 15,2. apud BETTENCOURT, 1997, p. 79)
[4] (Cf. Vulg. “deinde dicit discipulo ecce mater tua et ex illa hora accepit eam discipulus in sua”.)
[5] (Cf. In Iohannem tr. 8, 9; apud BETTENCOURT, 1997, p. 80)
[6] (Cf. CLÁ DIAS, 1997, p. 422)
[7] (LAURENTIN, 1967, p. 85)
[8] (Cf. BOVER; ALDAMA; SOLA, 1961 p. 75) ”No morirán los fieles que fueren hallados vivos en el segundo advenimiento de Cristo”. (Tradução nossa)
[9] (Cf. BERRIZBEITIA, Francisco; Aula de Mariologia ministrada para a turma Santo Alberto Magno, no Instituto Teológico Tomás de Aquino, em 06/05/2010)
[10] (Cf. BOVER; ALDAMA; SOLA, 1961 p. 76)
[11] (Cf. ROYO MARIN, 1968, p. 207; apud CLÁ DIAS, 1997, p. 422)
[12] (JUGIE, 1944, p. 508; apud BOVER; ALDAMA; SOLA, 1961 p. 17) “Hasta fines del siglo VI se desconoce en Jerusalén la existencia de un sepulcro de la Virgen, aunque a partir de fines del siglo V se muestra en Getsemaní una casa de María, desde donde se dice Ella fué llevada al cielo”.(Tradução nossa)
[13] (IBIDEM, p. 587; apud op. cit.) “Al principio, en un círculo más restringido de fieles, hubo una verdadera tradición oral [que se remonta a San Juan] sobre el modo con que María pasó de la tierra al cielo. Pero hay que hacer constar que esta tradición, conocida de muy pocos, se oscureció muy pronto, aun em Palestina, hasta el punto de que el palestinense San Epifanio no tiene de ella el menor recuerdo”. (Tradução nossa)
[14] (Cf. Panario, Haer. 78, nm. 10s. apud BETTENCOURT, 1997, p. 79)
[15] (Cf. IDEM)
[16] (Cf. apud CLÁ DIAS, 1997, p. 425, negrito nosso)