Redação (21/02/2011, Virgo Flos Carmeli)
Entrevista com o secretário da congregação para a Educação católica
O que distingue uma universidade católica das demais instituições de ensino? Qual o papel do Magistério pontifício, na Igreja e na sociedade civil? A moral cristã está em crise? O Arcebispo Jean-Louis Bruguès esclarece para nossos leitores estas e outras questões da atualidade.
O Cardeal Zenon Grocholewski recordou recentemente a necessidade das universidades católicas conservarem sua própria identidade. Poderia expor-nos as dificuldades que elas enfrentam para manter suas características num mundo secularizado?
Com frequência, pergunto-me qual é atualmente o primeiro desafio, ou o desafio mais importante, lançado ao ensino católico, tanto superior, nas universidades, quanto nas demais escolas. E respondo: vivemos em sociedades pluralistas. Pluralistas do ponto de vista cultural e religioso, e quanto mais se manifesta esse pluralismo, mais cada um de nós se volta para sua identidade: “Quem sou eu no meio de todos os outros?”. A questão da identidade é pois, mais premente, mais relevante hoje do que há vinte ou mesmo quarenta anos.
Portanto, nossas instituições têm diante de si uma escolha. Antes de tudo é necessário dizer que a maior parte delas goza de boa reputação, por sua excelência em matéria de formação, do acompanhamento pessoal, do nível científico atingido. As escolas e universidades católicas são apreciadas, um pouco por toda parte, no mundo inteiro, e isso é um motivo de ufania para nossa Congregação. Se elas, entretanto não visam senão a excelência, surge logo a pergunta: “O que diferencia uma escola ou universidade católica de outras escolas?”.
Não se trata, portanto, de conservar a identidade, mas de reencontrá-la nesse novo contexto. No fundo, a identidade católica é essa mescla — magnífica, mas também difícil — entre a abertura para o universal e a confissão de uma Fé particular, que é a Fé Católica.
Segundo a Constituição apostólica “Ex Corde Ecclesiæ”, as atitudes e os princípios católicos devem impregnar toda a vida das universidades católicas…
Isso varia muito de acordo com os países. Diria eu que há dois pontos nos quais a identidade católica se manifesta com predileção.
O primeiro é o do ensino. Desejamos que todas as universidades católicas — nas quais ninguém é obrigado a matricular-se — deem de forma obrigatória a todos os seus alunos uma formação em antropologia cristã, em ética cristã e uma pequena iniciação à teologia. Não para forçá-los a se tornarem católicos — eles não se deixariam forçar —, mas para dizer-lhes: “Temos uma tradição, uma visão do mundo, da sociedade, da História, e a comunicamos a vocês. São livres de a aproveitarem como lhes parecer melhor”. Respeitamos, portanto, a liberdade de consciência.
Há um segundo ponto, o qual eu denominaria de “pastoral”: uma universidade católica é um local onde se deve poder rezar, deve-se poder celebrar o mistério cristão. Portanto, é preciso haver nela uma capela de acesso fácil e constante ao público que assinale o centro vital e
simbólico ao mesmo tempo.
Eu acrescentaria que em toda universidade católica é necessário encontrar uma faculdade de teologia. A iniciação à cultura cristã e à visão cristã do mundo e da sociedade compete de modo privilegiado à faculdade de teologia, que deveria proporcionar ensinamentos a todas as outras faculdades da universidade.
A “Ex Corde Ecclesiæ” estimula uma íntima relação entre as atividades de uma universidade católica e a missão evangelizadora da Igreja. Não lhe parece haver ainda, sob este aspecto, um longo caminho a percorrer?
Mais uma vez, isso depende dos lugares. Não sei se devo mencionar nações, mas, afinal, há um ano e meio viajei ao Chile, visitei cinco universidades católicas e fiquei fascinado pela qualidade daquilo que eu via. Ou seja, instituições que, do ponto de vista da competência profissional, figuravam entre as melhores do país, a tal ponto que, quando se preparava uma reforma educacional, de bom grado os ministros se dirigiam a elas para solicitar sua opinião.
Eram também instituições nas quais a identidade cristã estava marcada de modo imediato e simples. Chegando de improviso a uma delas, num dia de semana, quis presidir a celebração da Missa, sem que os alunos tivessem sido avisados. Havia 800 deles na capela… Portanto, há lugares onde nossas universidades católicas atingiram efetivamente uma qualidade que eu chamaria de exemplar.
Nem todas chegaram a esse grau, mas, nos meus quase três anos de trabalho na Congregação, constato que há um movimento geral — mais ou menos rápido, mais ou menos profundo, conforme o lugar — rumo à reafirmação da identidade cristã nas sociedades tais como hoje elas evoluem.
Quais são, em sua opinião, as principais qualidades que deveriam ornar o professor universitário em nossos dias?
Veja, os docentes de uma universidade católica não são todos católicos. Então, devemos pedir-lhes que, no mínimo, tenham boa vontade em face da tradição católica e, por exemplo, não a critiquem. Mas, com relação aos professores que se apresentam como católicos, somos sensíveis não somente ao que dizem, mas também ao que fazem. O professor católico precisa, pois, aliar a qualidade do ensinamento transmitido à qualidade de vida, ao testemunho de vida e à confissão de sua Fé pessoal.
O “Processo de Bolonha” tem exigido bastante atenção da Congregação para a Educação Católica nestes últimos anos. Em que consiste esse Processo?
O Processo de Bolonha começou há quase dez anos e chegamos ao fim da primeira etapa, da primeira década. Em sua origem se restringia aos países da Europa, em número de 27, mas ao longo dos anos outras nações se interessaram por ele, de modo que hoje são 47 os países envolvidos.
Seus objetivos são simples de enunciar (quanto a realizá-los, já é outro problema!): a padronização dos diplomas, de tal forma que em todos os países participantes do Processo de Bolonha — sobretudo os que assinaram a Convenção de Lisboa — os mesmos diplomas correspondam ao mesmo nível de estudo, e os estudantes possam, caso desejem, passar de um estabelecimento para outro, de uma universidade para outra ou de um país para outro. A primeira preocupação é portanto, a padronização dos diplomas, para chegar à segunda preocupação: a fluidez ou mobilidade, tanto dos estudantes quanto dos professores.
Pode-se dizer que, ao fim de dez anos, é notória a mobilidade dos estudantes, embora ela pudesse ser maior. A dos professores é mais problemática.
O que está em jogo aí para a Igreja? Quais as esperanças da Congregação a esse respeito?
A Igreja entrou nesse Processo não como Igreja, pois ele envolve apenas países, mas como Estado Pois bem, o Estado da Santa Sé ingressou nele desde o início. Evidentemente, o proveito que esperamos tirar daí é, em primeiro lugar, que uma cultura da qualidade caracterize nossas universidades, como deve caracterizar as universidades dos países abrangidos. Só isso já representa uma vantagem e um estímulo para nós.
Esperamos também, evidentemente, que os estudantes formados em nossas universidades possam ter seus diplomas reconhecidos em outros países. Isto implica que o Processo de Bolonha seja concretizado por acordos de país a país. Por exemplo, a Santa Sé e a República Francesa assinaram em dezembro de 2008 um acordo de reconhecimento dos diplomas e dos títulos.
Há desafios especialmente notórios a destacar, para tornar efetivo esse plano?
Estamos criando uma consciência em nível europeu, antes de chegar a uma consciência universal. Os estudantes entram de bom grado nesse Processo, mas os Estados são mais reticentes. Por quê? Porque possuíam mais ou menos, até agora, um verdadeiro monopólio dos diplomas. Ora, entrar nesse Processo é alienar uma parte de sua soberania em matéria educativa, e isso, evidentemente, não é fácil em países que têm — digamos assim — tradições jacobinas.
E os dirigentes de universidades, como correspondem às oportunidades oferecidas pelo “Processo de Bolonha”? Como acolhem as novas perspectivas?
Nossas universidades caracterizam-se pela liberdade de pensamento e de expressão. Assim, perante o Processo de Bolonha encontramos nelas um leque extremamente amplo de reações, desde o entusiasmo até a reserva.
Julgo que hoje a situação está mudando. Com efeito, nossos estabelecimentos começam a perceber o interesse dessa padronização, dessa fluidez, pois, por exemplo, a teologia — que aparecia anteriormente, digamos, como uma ciência de sacristia — tornou-se hoje uma ciência de interesse geral, como a medicina ou a engenharia. Percebe-se, pois, o mérito desse Processo. Mas, podem-se medir também as dificuldades de aplicação. É preciso, por exemplo, que os créditos sejam os mesmos por toda parte, com o mesmo número de horas, e isso implica revisões talvez difíceis de fazer.
Considerando encíclicas como a “Humanae vitae”, de Paulo VI, e a “Veritatis splendor”, de João Paulo II, como V. Excia. descreveria o papel do Magistério na ética das últimas décadas?
Precisamos distinguir entre o papel do Magistério na Igreja e nas sociedades civis. O que se denomina doutrina social da Igreja é, na realidade, uma doutrina moral sobre a família, a vida econômica, política, social, e também a cultura. A Veritatis Splendor traz uma novidade considerável, pois é uma encíclica na qual, pela primeira vez na história da Igreja, são tratados os fundamentos da moral.
O papel do Magistério no interior da Igreja — apoiando-se evidentemente na palavra de Deus, mas também na lei natural — é de propor ao Povo de Deus, bem como a todos os homens de boa vontade, princípios gerais de conduta de vida, além de normas concretas e particulares. Este segundo aspecto é que havia dado matéria ao “dissentimento”, ao “dissensões dos teólogos”, nos anos 70–80, e a Encíclica procura precisamente dar resposta a esse dissensus. Nas sociedades civis — amplamente secularizadas e amiúde multiculturais, pluralistas, do ponto de vista religioso —, eu diria que o Magistério é quase sistematicamente criticado e questionado. Uma sociedade secularizada é aquela que não consegue admitir Magistério algum, sobretudo se ele é de natureza religiosa, pretendendo exprimir princípios e normas em nome de uma referência superior ao século, fazendo — digamos — apelo a uma transcendência, quer seja religiosa, quer seja metafísica. Portanto, ela não criticará o Magistério apenas por afirmar tal ou qual proposição que não lhe agrada, mas por se pronunciar como Magistério. Isto é o aspecto crítico e inevitável. Evidentemente, os órgãos da mídia, muitos dos quais se consideram o novo magistério das sociedades secularizadas, serão os mais críticos em face de qualquer magistério, em especial o religioso.
Ao mesmo tempo, porém, constato ser a Igreja hoje muito mais interrogada do que no passado, como se ela permanecesse uma referência nas gerações que se questionam sobre o sentido da vida; talvez mesmo a referência, que se pronuncia a respeito das questões fundamentais do sentido da vida.
Que relações podemos encontrar entre o “Catecismo da Igreja Católica” e a “Veritatis splendor”, na via teológica e pastoral da Igreja?
Uma encíclica procura dar resposta a problemáticas limitadas. Limitadas no tempo e por vezes no espaço. É este o caso da Veritatis splendor, dirigida, sobretudo às opiniões correntes no meio católico anglo-saxônico. Portanto, uma encíclica — exceto se tiver uma importância de primeiro plano — não durará por vários séculos. Seu objetivo é de fato a atualidade.
O catecismo é totalmente diferente: ele visa pôr à disposição do povo de Deus, e de todos os homens interessados na cultura cristã, o patrimônio moral acumulado ao longo dos séculos, e mesmo dos milênios, e que engloba também o patrimônio de sabedoria da humanidade. No fundo, o catecismo é um compendium — é este o termo que tinha sido escolhido —, um compendium de sabedoria, não somente para os cristãos, mas também para os não cristãos. Um catecismo deve durar muito tempo, como foi o caso do catecismo anterior. Logo, se nele forem introduzidas noções muito atuais, em pouco tempo ele estará ultrapassado.
Como deveria ser abordado hoje o ensino da Teologia Moral, nos seminários e em nível pastoral?
Penso que estamos passando de um modelo para outro. Diz-se por vezes que a moral cristã está em crise. Não creio tratar-se de uma crise, pois a crise assinala um paroxismo após o qual as coisas se restabelecem. Ora, o que aqui se denomina “crise” é na realidade um fenômeno já muito longo, de vários decênios… Prefiro falar de ruptura.
No fim do século XVI e início do século XVII instalou-se — primeiro na Igreja, depois nas outras confissões cristãs, mas também mais tarde, com Kant, nas sociedades — um modelo, denominado o modelo das morais de obrigação: “Por que proceder de tal ou tal maneira?”. “Porque isso é necessário em nome do Bem”. Parece-me que esse modelo — o qual, repito, reinou tanto na Igreja quanto nas sociedades modernas — está desaparecendo, e andamos à procura de um novo. Se eu retomasse expressões de Michel Foucault, diria que estamos passando de uma ética do código para uma ética da construção de si. No fundo, a moral é aquilo que permite ao homem aceitar-se a si mesmo, construir-se, depois dar-se, numa sociedade mais justa e fraterna. E creio que vivemos um período difícil e apaixonante ao mesmo tempo, pois mudamos de modelo e, evidentemente, é preciso tempo e tato para apreender esse novo modelo.
Portanto, eu desejaria que nos seminários se apresentasse a moral não apenas sob o ângulo das obrigações, mas também sob o da arte de viver, de uma estética da existência, digamos, de uma sabedoria.
Pe. Louis Goyard, EP
Publicado na Revista Arautos do Evangelho. Janeiro 2011. n. 109. p. 30-33.