Redação (04/10/2011, Virgo Flos Carmeli) “Olhai como crescem os lírios do campo. Não trabalham, nem fiam. No entanto, eu vos digo, nem Salomão, em toda a sua glória, jamais se vestiu como um só dentre eles” (Mt 6, 28-29).
Assim como o Divino Mestre, quantos não foram os homens que detiveram a sua atenção sobre um lírio? E por que isso? Muitos diriam que é pelo fato de ele ser belo. Mas, se perguntássemos o que é o belo, muitos não saberiam responder. Embora ao longo dos tempos abundantemente se tenha escrito sobre a beleza, entretanto, não é tarefa fácil explicá-la.
O Doutor Angélico define a beleza com poucos vocábulos: “pulchra enim dicuntur quae visa placent”[1]. Aquilo que visto, agrada. Com efeito, o belo naturalmente atrai a atenção humana, agrada o intelecto e cativa a vontade. Na Suma Teológica o Aquinense mostra três características fundamentais do pulchrum: claridade, integridade e proporção. “Para a beleza são requeridas três coisas: primeiro, a integridade ou perfeição, pois o que é inacabado, por ser inacabado, é feio. Também se requer a devida proporção ou harmonia. Por último, é necessária a claridade, e daqui decorre que aquilo que tem nitidez de cor seja chamado belo”[2].
Pulchrum transcendental
No Universo existem graus de bondade e de verdade. Onde há bondade, existe beleza[3], bem como verdade[4], pois o bonum, o verum e o pulchrum sempre se encontram unidos por serem propriedades transcendentais do ser[5].
O pulchrum possui valor transcendental que resulta de sua ligação com o bonum e o verum, pois essas características frequentemente não se encontram separadas[6]. Elas estão intrinsecamente ligadas ao ser[7] e com ele se convertem[8]. Poder-se-ía dizer que essas propriedades formam como que um arco gótico. Um vértice é o verum, o outro é o bonum, e tal união dá origem ao pulchrum [9]. Garrigou-Lagrange afirma que o belo é o esplendor de todas as propriedades do ser reunidas: “O belo na ordem criada é o esplendor de todos os transcendentais reunidos, do ser, do uno, do verdadeiro e do bem; ou, mais particularmente, é o fulgor de uma harmoniosa unidade de proporção na integridade das partes (splendor, proportio, integritas, cfr. I, q. 39, a. 8)”[10].
Ao comentar a beleza no plano ontológico, Molinaro retoma as características dadas pelo Doutor Angélico para explicar por que o pulchrum é uma propriedade transcendental do ser. Segundo este autor, a beleza é uma propriedade transcendental pela perfeita convertibilidade “da unidade como integridade, da bondade como proporção e da verdade como claridade” [11]. Sendo o ente considerado belo apenas quando é “uno e íntegro, bom e proporcionado, verdadeiro e claro”[12].
Mondin, ao fazer uma resenha sobre a doutrina da beleza em São Tomás, conclui dizendo que, apesar do Aquinense não haver dedicado uma obra para explicitar que o pulchrum seja um transcendental, entretanto, pode-se chegar a tal conclusão baseando-se em diversos comentários do Angélico sobre o tema: “São Tomás não dedica à beleza a mesma atenção que reserva aos transcendentais da unidade, da verdade e da bondade. De qualquer forma, das suas indicações fragmentadas, é possível reconstruir um quadro muito articulado, claro e definido, do qual resulta que a beleza é uma propriedade transcendental do ser, distinta da verdade e da bondade; está presente universalmente, mas se ensina analogicamente, primeiro de Deus e depois das criaturas; tem como fonte última e universal a Deus, o qual, porém, a distribui também às suas criaturas, e realiza isso de duas maneiras: fazendo-as belas e doando a algumas dessas o poder de produzir coisas belas”[13].
Das criaturas ao Criador
A respeito da beleza, Platão já discorrera em seu tempo. Para ele, o princípio de uma ascensão à ideia divina de Beleza tem como ponto de partida o amor. É por meio deste sentimento que o homem poderá contemplar as criaturas corpóreas e dar um passo rumo à beleza moral. Atingindo essa beleza posta nos costumes, o homem poderá ascender aos belos ensinamentos — que outra coisa não são, senão a beleza intelectual — para assim chegar à consideração da Beleza em si mesma — a Beleza enquanto tal — da qual as demais belezas particulares não são senão mera participação[14]. Assim sendo, segundo o fundador da Academia, o homem ascende através de diversos graus que o levam a encontrar e a conhecer belezas superiores, até chegar à Beleza em si mesma[15]. Ele chega a afirmar que toda participação de beleza contida no Universo tem como modelo essa “Beleza imutável”: “O amor conduz o filósofo até a única ciência verdadeira, que consiste na contemplação da Beleza em si, que é uma realidade subsistente, objetiva, transcendente, eterna, imutável, que não nasce e nem morre, autossuficiente, simples, incorpórea, divina e que diviniza ao homem que a possui, vínculo de toda a realidade, modelo do qual participam todas as coisas belas”[16].
Esse pensamento de Platão é um primeiro esboço, ainda que não inteiramente nítido, da relação da beleza participada com a Beleza subsistente por si mesma. Ao discorrer acerca do pulchrum, Jolivet procura mostrar que nos diversos seres que compõem o Universo, existe uma beleza que, necessariamente, possui uma causa única, pois se não existisse uma fonte absoluta de onde ela proviesse, os seres teriam a pulchritude em razão de sua própria natureza. Entretanto, ele diz ser isso impossível, pois se encontram neles diversos graus de beleza. Por isto, conclui-se que necessariamente existe a Beleza em si, que não participa dessa hierarquia das criaturas pelo fato de existir acima delas, sendo a Beleza total, infinita e incriada[17]: “… os seres que possuem graus desiguais de perfeição não têm em si mesmos a razão última desta perfeição, e esta não pode explicar-se senão por um Ser que a possui absolutamente e essencialmente, enquanto que todo o resto a possui apenas por participação”[18].
As belezas contidas no Universo nos falam de uma Beleza maior, imutável, mas da qual emanam todas as demais pulchritudes[19]. Essas belezas mutáveis são apenas reflexos de uma matriz de Beleza de onde elas provêm. Pois toda e qualquer forma de beleza existente no universo só é considerada bela enquanto possui uma certa semelhança com a beleza divina. Se algo no mundo é considerado belo, o é de alguma maneira por ser imagem da beleza do Criador, que ao criar, deixou sua divina marca nas criaturas[20]. Assim como um artista, que ao pintar um quadro ou realizar uma obra de arte, deixa de alguma forma em seu trabalho a marca de sua personalidade, da mesma forma o Divino Artista deixou em suas obras sua divina marca, fazendo que todas as criaturas refletissem, cada uma a seu modo, diversos aspectos de seu Criador.
Desta forma, por meio dos atrativos bons, belos e verdadeiros encontrados na natureza material, podemos elevar-nos Àquele que é propriamente o Bem, a Beleza e a Verdade por excelência. O Criador não é belo como as criaturas são belas, pois nelas a beleza se encontra apenas como forma de participação[21]. Entretanto, nele está de modo irrestrito, substancial e essencial[22].
A beleza encontrada na criação convida o homem a pensar nas coisas celestes, leva-o a se interrogar de onde surgem essas maravilhas que encantam os inocentes, e despertam a curiosidade dos sábios. Contemplando a beleza existente no mundo, tendemos naturalmente a transcender a aparência material das criaturas, pois, como nos diz o livro da Sabedoria: “… a grandeza e a beleza das criaturas fazem, por analogia, contemplar seu Autor” (Sb 13,5), “pois foi a própria fonte da beleza que as criou” (Sb 13,3). Não é sem razão que Santo Agostinho, em um de seus sermões dizia: “ Interroga a beleza da terra, interroga a beleza do mar, interroga a beleza do ar dilatado e difuso, interroga a beleza do céu, interroga o ritmo ordenado dos astros; interroga o sol, que ilumina o dia com fulgor; interroga a lua, que suaviza com seu resplendor a obscuridade da noite que segue ao dia; interroga os animais que se movem nas águas, que habitam a terra e que voam no ar […] Interroga todas essas realidades. Todas elas te responderão: Olha-nos, somos belas. Sua beleza é um hino (confissão) de louvor. Quem fez essas coisas belas, ainda que mutáveis, senão a própria Beleza imutável?”[23]
Dartagnan Alves de Oliveira Souza
[1] S. Th. I, q.5, a.4.
[2] S. Th. I, q. 39, a. 8.
[3] Cf. S. Th. I, q. 5, a. 4.
[4] Cf. STORK YEPES, Ricardo e ECHEVARRÍA ARANGUREN, Javier. Fundamentos de antropologia: um ideal da excelência humana. Tradução de Patrícia Carol Dwyer. São Paulo: Instituto Brasileiro de Filosofia e Ciência “Raimundo Lúlio”, 2005. p. 215.
[5] Cf. BALTHASAR, Hans Urs Von. Gloria: una estética teológica. Madrid: Encuentro,, 2007. p. 318-319.
[6] Cf. MELENDO, Tomás. Metafísica da realidade: as relações entre filosofia e vida. Tradução de João Roberto Costa e Silva. São Paulo: Instituto Brasileiro de Filosofia e Ciência “Raimundo Lúlio”, 2002. p.89.
[7] Cf. MARITAIN, Jacques. Sete lições sobre o ser e os primeiros princípios da razão especulativa. 3a. ed. Tradução de Nicolás Nyimi Campanário. São Paulo: Loyola, 1996. p. 73.
[8] Cf. São Tomás de Aquino. De veritate, q. 1 a. 1 s.c. 2.
[9] Cf. MOLINARO, Aniceto. Metafísica: curso sistemático. Tradução de João Paixão Netto e Roque Frangiotti. São Paulo: Paulus, 2002. p. 90.
[10] GARRIGOU-LAGRANGE, Reginald. Perfections Divines. Paris: Beauchesne, 1936. p. 299. Cf. também ELDERS Leo J. La metafisica dell’essere di san Tommaso d’Aquino in una prospettiva storica. v. I. Città del Vaticano: Libreria Editrice Vaticana, 1995. p. 167.
[11] MOLINARO, Op. Cit., p. 92.
[12] Ibid.
[13] MONDIN, Battista. Dizionario enciclopedico del pensiero di San Tommaso D’Aquino. 2a. ed. Bologna: Studio Domenicano, 2000. p. 98.
[14] Cf. PLATÃO. Fédon, XLIX, 100. Citado por MANDOLFO, Rodolfo. O pensamento antigo: história da filosofia greco-romana I. T. 1 y 2. 2a. ed. Tradução de Lycurgo Gomes da Motta. São Paulo: Mestre Jou, 1966. p. 13.
[15] Cf. PLATÃO. O banquete. Citado por FRAILE, Guillermo, O. P. Historia de la filosofía I: Grecia y Roma. 5a. ed. Madrid: Católica, 1982. p. 354-355.
[16] Ibid., p. 326-327.
[17] Cf. JOLIVET, Régis. Curso de filosofia. 8ª ed. Tradução de Eduardo Prado de Mendonça. Rio de Janeiro: Livraria Agir, 1966. p. 301.
[18] Ibid.
[19] Cf. JOLIVET, Régis. Tratado de Filosofia III: Metafísica. 2ª ed. Tradução de Maria da Glória Pereira Pinto Alcure. Rio de Janeiro: Livraria Agir Editora, 1972. p. 260.
[20] BRUYNE, Edgar de. L’Esthétique du Moyen Age. Louvain: L’Institut Supérieur de Philosophie, 1947. p. 10.
[21] Cf. CLÁ DIAS, João Scognamiglio, E.P. La fidelidad a la primera mirada: un periplo desde la aprehensión del ser hasta la contemplación de lo absoluto. São Paulo, 2008. Tesis de pós-graduación (Humanidades). PUCMM. Facultad de Ciencias y Humanidades.p.148.
[22] Cf. TERLIZZI, Padre Francisco M. Breve curso de philosophia: para o uso da mocidade. Roma: Propaganda, 1912.p. 265.
[23] Santo Agostinho, Sermão 241, 2.