Redação (14/03/2010, Virgo Flos Carmeli) “As únicas jóias que embelezam a esposa de um Rei Crucificado são os espinhos e a Cruz”, disse a Santa Gema Galgani o seu Anjo da guarda. Desde muito jovem Gema via o seu Anjo, conversava com ele e até mesmo rezavam juntos. Eram companheiros inseparáveis.
A jovem possuía uma beleza privilegiada, sua mãe havia falecido, seu pai entrara em falência, a melhor solução para todos estes problemas seria encontrar um esposo rico para a moça. O que não seria difícil. Para isso, deram-lhe de presente duas belas jóias: um relógio de pulso e um crucifixo para portar ao pescoço. O presente agradou muito a pequena Gema, que foi logo ver no espelho como lhe caiam e que efeito produziria nos outros.
Apenas tendo consentido nesta pequena vaidade, viu atrás de si um jovem de rara beleza, radiante de luz, mas entristecido e quase zangado que lhe fitava com olhar severo. “As únicas jóias que embelezam a esposa de um Rei Crucificado são os espinhos e a Cruz”. A partir desse dia, nunca mais Santa Gema se adornaria com outras jóias que não fossem essas apresentadas por seu Anjo.[1]
Conversar com o próprio Anjo da Guarda, como quem fala com um amigo íntimo ou um irmão é um fato extraordinário, que raras vezes acontece. Mas, os Anjos comunicam-se conosco, por meio de uma linguagem que não é de palavras, e mais frequentemente do que se pensa. Basta ter espírito de fé e ter a atenção voltada para as realidades sobrenaturais.
A doutrina católica ensina que Deus designa um Anjo para guardar cada homem desde o instante de seu nascimento. Esse Anjo não terá outro a quem proteger durante toda a história da humanidade, mas somente aquele. São estes celestes guardiões que nos amparam permanentemente em nossa peregrinação terrena. [2] [3] [4] [5] [6] [7] [8] [9]
Acontece que nem todas as pessoas têm esse relacionamento tão direto com o seu próprio Anjo da guarda, como o tinha Sta. Gema. Entretanto, de alguma maneira, sempre estamos nos relacionando com o nosso Anjo, e, sobretudo, ele conosco. Mas como se dá essa comunicação se não possui corpo material, e, portanto, não tem boca nem língua? Como conversam os Anjos?
O doutor angélico nos explica que os Anjos podem se comunicar de duas maneiras distintas, tanto com os homens quanto entre si: pela iluminação e pela simples locução.
A iluminação é o ato pelo qual se manifesta uma verdade. [10] Assim se diz que um Anjo ilumina outro quando lhe manifesta uma verdade que conhece e que lhe foi revelada por Deus e que o outro desconhece ou conhece em grau inferior. Esta iluminação é concedida por Deus a todos os Anjos, mas nem todos a recebem – ou aproveitam – de igual modo.[11] Isto, entretanto, não se deve a uma deficiência do modo pelo qual Deus os ilumina, mas porque a capacidade de apreender é maior para uns e menor para outros.
Para exemplificar a tese, o Pseudo-Dionísio nos oferece a imagem da difusão do raio de sol, que “atravessa sem dificuldade a primeira matéria, a mais translúcida de todas, e, através dela, faz brilhar mais luminosamente os próprios reluzimentos”, mas que, assim que ela choca com matérias mais opacas, “mais reduzida é sua manifestação difusiva, em razão da inaptidão das matérias iluminadas em possuir um hábitus transmissor do dom da luz”, que decresce pouco a pouco até que por fim a transmissão se torne mais ou menos impossível[12]. Portanto, a razão desta insuficiência no aproveitamento da iluminação por parte dos Anjos inferiores deve-se apenas à sua maneira menos perfeita de compreender as verdades que lhes são propostas. Por isso os Anjos superiores transmitem aos inferiores o que viram de Deus.
Segundo São Tomás a iluminação é feita da seguinte maneira: um fortalecimento, por parte do Anjo superior, da capacidade que o Anjo inferior tem de conhecer, o que se pode dar simplesmente com a sua presença ou pela solicitude deste para com o Anjo inferior, como se lhe estimulasse a fim de que pudesse conhecer verdades de ordem mais elevada.[13]
Como já vimos, o Anjo superior tem uma capacidade maior de apreender essas verdades sobrenaturais que o Anjo inferior, então para que este possa entender aquilo que o Anjo superior quer lhe transmitir é necessário da que o Anjo superior fragmenta seu conhecimento para que o Anjo inferior consiga entender. O exemplo que o próprio São Tomás dá para esta teoria é de um professor que tem um conhecimento muito amplo da matéria que leciona e que ao apresentá-la aos alunos divide-a em partes coerentes e ordenadas, de modo que os alunos possam entendê-la. Evidentemente, os alunos terão um conhecimento da matéria muito inferior e mais fracionado em relação ao do professor, portanto menos rico. Assim se passa com os Anjos.[14]
Esta forma de comunicação só se dá da parte dos Anjos superiores para com os Anjos inferiores, mas existe uma outra forma de comunicação, que é a simples locução, na qual também os Anjos inferiores “falam” aos superiores. São Tomás explica que a locução tem por finalidade manifestar algo desconhecido àquele com quem se fala ou pedir-lhe alguma coisa.[15]
A locução se distingue da iluminação, porque a iluminação se refere às verdades que procedem de Deus como verdade primeira. A locução tem por objeto a revelação daqueles conhecimentos que dependem da vontade do comunicante e que São Tomás denomina “segredos do coração”. Não são verdades essenciais; são dados da própria consciência pessoal, cuja manifestação está debaixo do selo da própria vontade. Daí a liberdade característica de tal comunicação da intimidade[16].
Evidentemente, a comunicação dos Anjos uns com os outros não se expressa com sons, palavras ou outro elemento material, pois sua natureza é puramente espiritual. A sua comunicação corresponde a um ato de vontade de que outros Anjos conheçam ou compreendam conceitos que possuem e que conservam ocultos, e podem inclusive dar a conhecer a uns e não a outros, conforme sua vontade.[17] Assim, os Anjos falam também a Deus, perguntando-Lhe coisas, pedindo esclarecimentos, louvando-O e glorificando-O.[18]
Isso que no Anjo é co-natural, no homem pode se dar pela graça. Um Anjo superior pelo simples fato de voltar-se para o inferior já lhe amplia a capacidade cognoscitiva.[19] Nós poderíamos sentar ao lado de São Tomás de Aquino durante uma semana que provavelmente não ficaríamos mais inteligentes, mas por uma graça de Deus poderíamos ficar. O exemplo prototípico disso é o cumprimento de Nossa Senhora a sua prima Santa Isabel. Maria provavelmente não deu uma aula filosófica à sua prima, mas o simples fato de Ela ser quem é e estar ali próxima e de fazer ouvir sua voz, foi o suficiente para que Santa Isabel percebesse estar ali a Mãe do Messias e para santificar São João batista no claustro materno.
É sem dúvida essa “iluminação” que nos move a querermos estar próximos das pessoas de quem gostamos, pois sentimos que alguma coisa nos eleva e nos atrai.
E sobre o que conversam os anjos? Evidentemente, o principal objeto da conversa angélica é Deus, pois toda criatura tende naturalmente a voltar-se para o Criador, sobretudo em se tratando de criaturas tão perfeitas como são os Anjos, a além do mais estando eles na Visão Beatífica, sempre vendo aspectos novos de Deus durante toda a eternidade, pois sendo Deus infinito, por mais que eles vejam a Deus no seu todo, não O vêem totalmente, posto que isso é impossível a qualquer criatura.
Mas, podemos concluir disso que um dos temas sobre os quais os Anjos conversam é a intervenção de Deus na Obra da Criação, ora o elemento mais importante da criação é o homem. Em última análise os anjos conversam sobre a ação de Deus na história da humanidade.[20] A respeito da criação os Anjos superiores comunicam aos inferiores tudo o que vêem em Deus, pois como vimos, os superiores vêem de maneira mais rica todas as coisas e iluminam os inferiores sobre aquilo que viram.
Poderíamos imaginar inclusive uma conversa angélica na qual os nossos Anjos da Guarda perguntam a algum Anjo mais elevado como compreender melhor aquele do qual é guardião e querendo saber por que fez aquilo, por que deixou de fazer isto, etc., e o Anjo superior explica que isso aconteceu por que sua natureza é constituída de tal maneira e que seria conveniente agir com ele de tal ou qual modo, que Deus tem este ou aquele plano para ele, etc. Enfim, cada um pode imaginar – ou dar-se conta de que já aconteceu – mil circunstâncias em que nossos Anjos da Guarda recorreram a Deus, através dos Anjos superiores, para nos auxiliar.
Portanto, nossos Anjos da Guarda estão muitas vezes conversando sobre nós com os Anjos que lhes são superiores, de maneira que nós fazemos parte de uma “cascata” de Anjos que estão preocupados com cada um de nós para nos proteger, auxiliar e interceder por nós junto a Deus.
Mas eles não conversam apenas entre si ou com Deus. Também com os homens eles se comunicam. Por uma sublime disposição da Providência Divina, os seres superiores se tornam intermediários entre Deus e os que lhes são inferiores. Assim os Anjos são intermediários entre o Criador e os homens.[21]
Como diz São Tomás, citando São Dionízio, o homem não é capaz de captar um conceito puramente abstrato se não houver em sua mente algo à maneira de um invólucro que sirva de imagem para poder entender. Por isso os Anjos apresentam as verdades que querem transmitir aos homens sob uma aparência sensível a seus sentidos.[22]
Os Anjos, tanto os bons quanto os maus, têm poder sobre a imaginação humana[23], podendo nos inclinar à prática da virtude, dando-nos boas inspirações, sugerindo-nos bons propósitos, podem nos ajudar em nossas tarefas proporcionando-nos boas idéias, enfim, em toda sorte de ações podemos ser profundamente influenciado pelos espíritos angélicos. Os demônios, pelo contrário, estão sempre à espreita de uma oportunidade para nos fazer ofender a Deus, prejudicarmos nosso próximo, consentirmos em algum movimento de inveja, de raiva, sobretudo de desespero ou desânimo.
Para sabermos quem é que está agindo em nós existe um termômetro muito eficaz. Onde entra agitação ou perturbação, sempre a causa são os demônios. Quando sentimos alegria, paz de consciência e boas disposições de alma para ajudarmos os outros, nos sacrificarmos por alguém, podemos estar certos de ser isso fruto da ação dos espíritos angélicos.
Além desse tipo de auxílio que recebemos sempre de nosso Anjo da Guarda, a algumas almas Deus concede auxílios especiais. Por exemplo, Santa Faustina foi designada em determinado momento para ser porteira de seu convento. Entretanto, temia ela profundamente que o convento fosse algum dia invadido por bandidos. Pediu a Deus que a amparasse nessa difícil tarefa. Assim narra a santa o que aconteceu: “‘Minha filha, assim que fostes designada para este serviço, pus um querubim para te guardar. Portanto, não te inquietes.’ Depois de minha conversa com o Senhor, vi uma leve nuvem branca e, dentro na nuvem, um querubim, de mãos postas, cujo olhar era semelhante ao relâmpago.” [24]
Isso pode não nos acontecer todos os dias, ou talvez nunca na vida. Tanto melhor, pois Deus está querendo nos cumular de méritos pedindo que acreditemos sem ver. O que é absolutamente certo é que, vendo ou não, temos constantemente ao menos um Anjo que está ao nosso lado para toda e qualquer necessidade. Muitas vezes ele mesmo toma a iniciativa de nos ajudar, mas deixá-lo-iamos muito contente se nós também pedíssemos sua intercessão.
Ter um Anjo da Guarda é um dom do qual Deus é tão cioso que inclusive os não batizados o possuem. Antes do batismo não se pode receber a Eucaristia, não se tem a inabitação da Santíssima Trindade, não se tem a Deus como Pai e Amigo dentro da própria alma, entretanto Deus quer dar a todos um protetor e um amigo de todos os momentos a todos os homens.[25]
Se nós sentimos tantas vezes as insídias diabólicas a combater contra nós, com quanto mais razão não estará nosso Anjo da Guarda a combater por nós? Se ele nos permite alguma tribulação, provação ou sofrimento, é apenas para nosso bem, embora possamos não entender naquele momento.[26] Mas quanto mais nos sentimos abandonado, mais estamos sendo aparados insensivelmente por nosso Santo Anjo.
Quantas vezes a mãe não dá à criança um brinquedo, e, notando nesta um certo desprezo pelo brinquedo finge que vai tirá-lo de suas mãos? Então a criança se reanima na consideração do brinquedo. Assim também faz conosco o nosso Anjo da Guarda. Quando ele percebe que estamos entorpecidos na vida espiritual ele parece se afastar de nós, mas na realidade ele nos está aproximando dele. A melhor maneira de encaminhar alguém para o bom caminho é atraí-lo para esse caminho e não obrigá-lo a entrar por ele.
Peçamos, pois, a Deus e a sua Mãe Santíssima uma devoção entranhada aos Anjos, esses gloriosos intercessores celestes, de que muitas vezes esquecemos.
Felipe Rodrigues de Souza (3º Ano Teologia)
[1] Basilio, p. 25 e 26.
[2] Cf. Catéchisme du Concile de Trente, Parte 4, Cap. 39, n. 1.
[3] Cf. JOÃO XXIII, Discurso do 2 de outubro de 1960.
[4] Cf. VALBUENA, Jesús, Introdução à questão 113, p. 932. Suma Teológica, BAC, Madrid, 1950
[5] Cf. BASÍLIO, São, Contra Eunômio, Livro 3, n. 1.
[6] Cf. ORÍGENES, Comentários ao Evangelho de São Mateus, 5.
[7] Cf. JERÔNIMO, São, Commentaire sur Saint Matthieu, Tomo 2, Livro 3, Cap. 18.
[8] Cf. JOÃO XXIII, Discurso na Basílica de Santa Maria dos Anjos de 9 de setembro de 1962.
[9] Cf. AQUINO, São Tomás de, Suma de Teología, I pars, quest. I, q. 113.
[10] Cf. AQUINO, São Tomás de, Suma de Teología, I pars, quest. I, q. 106, a. 1, resp.
[11] Cf. AQUINO, São Tomás de, Suma de Teología, I pars, quest. I, q. 106, a. 4, resp.
[12] La diffusion du rayon solaire traverse sans difficulté la première matière, la plus translucide de toutes, et, à travers elle, fait briller plus lumineusement ses propres resplendissements, mais que, dès qu’elle se heurte aux matières plus opaques, plus réduite est sa manifestation diffusive, en raison de l’inaptitude des matières éclairées à posséder un habitus transmetteur du don de lumière, et elle décroît peu à peu de ce niveau jusqu’à ce que finalement la transmission devienne à peu près impossible (DIONÍSIO, La Hiérarchie Céleste, Chap. XIII, 3).
[13] Cf. AQUINO, São Tomás de, Suma de Teología, I pars, quest. I, q. 106, a. 1, resp.
[14] Cf. AQUINO, São Tomás de, Suma de Teología, I pars, quest. I, q. 106, a. 1, resp.
[15] Cf. AQUINO, São Tomás de, Suma de Teología, I pars, quest. I, q. 107, a. 2, resp.
[16] La locución se distingue de la iluminación, porque la iluminación se refiere a las verdades que proceden de Dios como primera verdad. La locución tiene por objeto la revelación de aquellos conocimientos que dependen de la voluntad del comunicante y que Sto. Tomás denomina “secretos del corazón”. No son verdades esenciales; son datos de la propia conciencia personal, cuya manifestación está bajo el sello de la propia voluntad. De ahí la libertad característica de tal comunicación de la intimidad (BARRENECHEA, José Maria, Introdução às questões 103 a 119, p. 878) Suma Teológica, 4ª ed., BAC Maior, Madrid, 2001.
[17] Cf. AQUINO, São Tomás de, Suma de Teología, I pars, quest. I, q. 107, a. 2, resp.
[18] Cf. AQUINO, São Tomás de, Suma de Teología, I pars, quest. I, q. 107, a. 3, resp.
[19] Cf. AQUINO, São Tomás de, Suma de Teología, I pars, quest. I, q. 106, a. 1, resp.
[20] Cf. AQUINO, São Tomás de, Suma de Teología, I pars, quest. I, q. 113, a. 8, sed contra e resp.
[21] Cf. AQUINO, São Tomás de, Suma de Teología, I pars, quest. I, q. 111, a. 1
[22] Cf. AQUINO, São Tomás de, Suma de Teología, I pars, quest. I, q. 111, a. 1
[23] Cf. AQUINO, São Tomás de, Suma de Teología, I pars, quest. I, q. 111, a. 3
[24] Faustina, p. 330.
[25] Cf. AQUINO, São Tomás de, Suma de Teología, I pars, quest. I, q. 113, a. 5
[26] Cf. AQUINO, São Tomás de, Suma de Teología, I pars, quest. I, q. 113, a. 6