Redação (02/09/2013, Virgo Flos Carmeli)
Lendo algumas passagens do evangelho que se referem ao encontro de Nosso Senhor Jesus Cristo com os seus familiares ficamos com séria impressão de que tinha grande quantidade de irmãos. Entretanto, a doutrina católica nos ensina uma verdade diversa. Como resolver esta aparente contradição que, ademais, é frequentemente polemizada em nossos dias? Neste artigo pretendemos esclarecer alguns pontos acerca do assunto que certamente serão úteis ao leitor.
Nos povos do Antigo Testamento, não havia somente a preocupação com o instantâneo e com a própria realização, mas também o empenho de que as obras se perpetuassem e a lembrança dos homens fosse sempre viva.
Entre estas nações antigas, uma das que mais se destacou, foi a de Israel. O povo judeu, com efeito, estimava muito três valores: o campo: “e deu a terra deles em herança, como patrimônio para Israel, seu povo” (Sl 134, 12); a ancianidade: “que seus anos atinjam muitas gerações” (Sl 60, 7); e a prole: “vede, os filhos são um dom de Deus: é uma recompensa o fruto das entranhas” (Sl 126, 3) e ainda em outro lugar: “a mulher, que, antes, era estéril, Ele a faz, em sua casa, mãe feliz de muitos filhos” (Sl 112, 9).
Todavia, deste tríplice “tesouro”, o mais prezado era a descendência. Isto, pois os filhos seriam os herdeiros do campo, os que auxiliariam os seus pais na velhice e perpetuariam a memória de sua família. Seria, portanto, uma abominação um homem que não atingisse tal apogeu. Assim narra o livro de Jó: “Sua memória apaga-se da terra, nada mais lembra o seu nome na região. É arrojado da luz para as trevas, é desterrado do mundo. Não tem descendente nem posteridade em sua tribo, nem sobrevivente algum em sua morada. O Ocidente está estupefato com sua sorte, o Oriente treme diante dela. Eis o que acontece com as tendas dos ímpios, os lugares habitados pelo homem que não conhece Deus” (Jó 18, 17-21).
Ora, tudo nos leva a supor que aquele que era o Filho bem amado (cf. Lc 9, 35), reuniria em si todas as bênçãos. Portanto, seria mais conveniente que a Santa Família fosse agraciada por uma numerosa descendência, o que parece se comprovar pela passagem de São Marcos: “Chegaram sua mãe e seus irmãos e, estando do lado de fora, mandaram chamá-lo. Ora, a multidão estava sentada ao redor dele; e disseram-lhe: Tua mãe e teus irmãos estão aí fora e te procuram” (Mc 3, 31-32). Assim se cumpria o Salmo: “Oh, como é bom, como é agradável os irmãos viverem juntos bem unidos” (Sl 132, 1).
Mais adiante continua o mesmo Evangelista: “Não é ele o carpinteiro, o filho de Maria, o irmão de Tiago, de José, de Judas e de Simão? Não vivem aqui entre nós também suas irmãs? E ficaram perplexos a seu respeito” (Mc 6, 3). E no Evangelho de São João: “Depois disso, desceu para Cafarnaum, com sua mãe, seus irmãos e seus discípulos” (Jo 2, 12) E o próprio São Paulo afirma: “Três anos depois subi a Jerusalém para conhecer Cefas, e fiquei com ele quinze dias. Dos outros apóstolos não vi mais nenhum, a não ser Tiago, o irmão do Senhor” (Gl 1, 18-19).
Alguns devem estar perplexos com esta colectânea de citações, atormentados por um ponto de interrogação: Nosso Senhor Jesus Cristo de fato teve ou não teve irmãos?
Esta polêmica é mais antiga do que podemos pensar! Há vários Padres e Doutores da Igreja, (São Jerônimo, séc. IV; Santo Ambrósio, séc. IV; entre outros) que no seu tempo travaram combates com hereges que não aceitavam a Virgindade de Nossa Senhora, alegando que não era mãe apenas do Homem-Deus, mas de outros tantos homens não divinos. Para isto baseavam-se nas passagens da Escritura Sagrada acima transcritas.
Entretanto, a Tradição da Igreja nos ensina outra coisa. Propugna a virgindade de Nossa Senhora antes, durante e de depois do parto, bem como a virgindade de seu esposo São José. A este respeito só poderemos concluir que Nosso Senhor não tinha irmãos. Como resolver, então, esta aparente contradição? Remontemos a passagens vetero-testamentárias, pois “pergunta e teu pai te contará, interroga e teus avós te ensinarão” (Dt 32, 7).
Comecemos, então, pelo livro do Gêneses. Neste encontramos a seguinte descrição: “Eis a descendência de Taré: Taré gerou Abrão, Nacor e Arão. Arão gerou Lot. Arão morreu em presença de Taré, seu pai, em Ur da Caldéia, sua terra natal” (Gn 11, 27-28). Assim, vemos o nascimento de Abraão e seu parentesco com Lot, como mais adiante se esclarece: “Taré tomou seu filho Abrão, seu neto Lot, filho de Arão, e Sarai, sua nora, mulher de Abrão, seu filho, e partiu com eles de Ur da Caldéia, indo para a terra de Canaã. Chegados a Harã, estabeleceram-se ali” (Gn 11, 31).
É evidente a nossos olhos que Taré teve apenas três filhos, era um grande patriarca de família bem estruturada. Agraciado por Deus, os filhos e netos se multiplicaram e a Escritura faz questão de deixar bem patente, para nosso benefício, a sua árvore genealógica e a relação de parentesco entre seus filhos, netos, sobrinhos e tios.
Contudo, mais adiante o Autor Sagrado afirma: “Abrão disse a Lot: Rogo-te que não haja discórdia entre mim e ti, nem entre nossos pastores, pois somos irmãos.” (Gn 13, 8.)
A união reinante na família era muito forte e abrangia até os laços mais remotos de parentesco, estreitando-os a tal forma que o tratamento entre os familiares era comummente o de “irmão”. Até os da própria nação eram assim considerados, como neste mandado de Deus a todo o povo: “Não odiarás o teu irmão no teu coração” (Dt 19, 17). Esta é uma realidade bastante viva naquela época, atribuía-se a irmandade mesmo entre tios e sobrinhos, como é o caso de Abraão e Lot.
Um outro exemplo, para mostrar qual era o grau de união de uma família, observamos na história de Tobias: “[O Anjo e Tobias] chegaram, pois à casa de Raguel, que os recebeu cordialmente. Vendo Tobias, Raguel disse a Edna, sua mulher: ‘Como este jovem é parecido com meu primo.’ Dito isto, perguntou: ‘De onde viestes, ó jovens?’ Conheceis porventura o meu primo Tobit?’ Certamente, responderam. E como Raguel começasse a elogiar Tobit, o anjo disse-lhe: ‘Esse Tobit de que falas é o pai deste jovem.’ Raguel lançou-se então ao pescoço de Tobias, beijou-o com lágrimas, e disse: ‘Abençoado sejas, meu filho, porque és filho de um homem de bem!’” (To 7, 1-7).
Tudo isto nos ajuda a compreender como esse povo entendia o uso da palavra “irmão”. Não se referia apenas aos laços de sangue, mas ao vínculo de amor mútuo, pois até um “desconhecido” ou um ser de outra natureza é designado de irmão, como se vê no mesmo livro: “Tobias chamou então a si o anjo, que ele julgava ser um homem, e disse-lhe: Azarias, meu irmão, peço-te que me ouças” (To 8, 1).
Assim temos uma noção de qual era a relação entre os antigos e como eles se tratavam. É verdade que as famílias de hoje usam a mesma designação, porém utilizam-na com o critério estrito ao sangue e às qualidades biológicas, e a este propósito muito se preza e não se confundem os graus de parentescos, talvez pelo pouco número de familiares ou por não haver união nos que existem; confundiu-se, assim, o sentido encontrado nas Escrituras.
Entretanto, é evidente que, na época em que Nosso Senhor nasceu, o povo judeu fazia jus às suas tradições, pondo em prática os costumes que tinha recebido, assimilando a mentalidade dos mais antigos. Deste modo, quando analisamos o Capítulo 6, Versículo 3 de São Marcos: “Não é ele o carpinteiro, o filho de Maria, o irmão de Tiago, de José, de Judas e de Simão?” torna-se evidente que o evangelista não se refere a uma irmandade estrita mas a um parentesco mais lato.
Contudo, como se isso não bastasse para clarificar a controvérsia encontramos no próprio Escrito Sagrado a solução para este problema. Assim lemos mais adiante: “Achavam-se ali também umas mulheres, observando de longe, entre as quais Maria Madalena, Maria, mãe de Tiago, o Menor, e de José, e Salomé” (Mc 15, 40). Fica assim patente que a referência a Tiago, José, Judas e Simão como irmãos do Senhor não pode fazer menção a laços sanguíneos estreitos, uma vez que eles são designados como os filhos de Maria, aquela que não é mãe de Jesus.
E como se tudo isso não fosse suficiente, lemos no relato da paixão do Senhor deixado por S. João: “Quando Jesus viu sua mãe e perto dela o discípulo que amava, disse à sua mãe: Mulher, eis aí teu filho. Depois disse ao discípulo: Eis aí tua mãe. E dessa hora em diante o discípulo a levou para a sua casa.” (Jo 19, 26-27) Ora, se considerássemos que Nosso Senhor Jesus Cristo tivesse algum irmão esta passagem não poderia fazer sentido, uma vez que não haveria qualquer necessidade de confiar sua mãe ao abrigo do discípulo amado, um dos filhos o faria. Bem como, não podemos admitir que ele privasse esse seu suposto irmão do convívio d’Aquela que sobrepassa em santidade todos os anjos.
Esclarecidos estes aspectos de carácter histórico, cultural e até semântico falta-nos elucidar apenas um ponto que pode ter ficado obscuro. Se uma descendência numerosa era uma confirmação da bênção de Deus, como pode ter acontecido que a Santa Família não tivesse recebido tal privilégio? “Ele respondeu-lhes: ‘Quem é minha mãe e quem são meus irmãos?’ E, correndo o olhar sobre a multidão, que estava sentada ao redor dele, disse: ‘Eis aqui minha mãe e meus irmãos. Aquele que faz a vontade de Deus, esse é meu irmão, minha irmã e minha mãe.’ (Mc 3, 33-35)
Nesta passagem o Senhor não só nos convida a um horizonte mais alto a respeito da grandeza e do mérito de Maria Santíssima, como também nos dá a chave para entender este mistério sobre a sua irmandade. Por mais numerosa que eventualmente pudesse ser a prole do Santo Casal, e ainda que sob a acção do Espírito Santo, ele nunca poderia alcançar o número de todos aqueles que se tornam irmãos de Nosso Senhor Jesus Cristo pelo batismo e pelo cumprimento da vontade de Deus. Assim, uma fraternidade pela carne seria uma diminuição e uma restrição, o que significaria um menor número de graças, já a filiação espiritual faz jus às palavras do Anjo: “Ave, cheia de graça, o Senhor é contigo.” (Lc 1,28) e santa Isabel mais adiante exclama: “Bendita és tu entre as mulheres” (Lc 1,42). Aquela que reuniu todas as bênçãos foi digna da maior descendência possível.
Por fim, devemos levar em conta uma particularidade que hoje em dia tende a ser omissa. As realidades espirituais são infinitamente superiores às realidades materiais. Portanto, podemos concluir positivamente que Nosso Senhor Jesus Cristo, tinha irmãos, tem, e continuará a tê-los abundantemente até ao fim do mundo, com uma excelência e superioridade de relações que nenhum homem poderá alguma vez alcançar, é que a família formou é divina e não humana.
Sérgio Nunes