Alma fiel

Redação (02/09/2013, Virgo Flos Carmeli)

Luís Filipe Barreto Defanti

Há dois mil anos surgiu em Israel um Homem realmente extraordinário. Ele passou pela terra fazendo o bem e com suas pregações atraiu as multidões, que acorriam a ouvir maravilhadas o Mestre que pregava com autoridade e declarou a seu próprio respeito: “Foi para dar testemunho da verdade que eu nasci e vim ao mundo. Todo aquele que é da verdade escuta a minha voz” (Jo 18,37). Essas palavras do Salvador são para nós um chamado: ser da verdade.

 Há em todo homem uma necessidade de verdade que faz dela o objeto de uma constante busca, nascida do mais íntimo do ser. Em última análise, a sede de verdade não é outra coisa que a procura do Absoluto posta no âmago dos seres racionais pelo próprio Criador. “Quem procura a verdade procura a Deus, ainda que não o saiba”.[1] Desse modo, estamos continuamente buscando a verdade, já que sempre estamos procurando a Deus, a própria Verdade.

A verdade da vida

Não há quem não se pergunte o que é a verdade. Conhecer as coisas como elas são em si mesmas é possuir a verdade, conhecê-las de modo diferente é enganar-se. A verdade atende o intelecto porque nela está o bem das naturezas inteligentes, seu fim e perfeição. Será ela também capaz de dar uma razão à nossa vida, conferindo-lhe sentido e valor superiores, e ainda satisfazer o imenso desejo de verdade que abrasa não mais nossa razão somente, mas, sobretudo nossa alma? Sim, e sob este aspecto ela se apresenta como verdade da vida, ou seja, uma conduta reta, conforme as palavras do rei Ezequias: “Lembra-te, Senhor, de como andei diante de ti segundo a verdade e sempre com um coração reto” (Is 38,3).

A verdade da vida é uma regra de retidão pessoal, segundo a qual a vida é chamada verdadeira, quer dizer, “enquanto ela se conforma àquilo que é sua própria regra e medida, ou seja, a lei divina, que lhe confere esta retidão”.[2] O salmista parece ter compreendido tal realidade quando cantou: “Escolhi seguir a trilha da verdade, diante de mim coloquei vossos preceitos, ó Senhor. Vossa lei é a verdade” (cf. Sl 118,30; 142).

De acordo com São Tomás, a verdade da vida é comum a todas as virtudes,[3] o que significa que engloba as virtudes e brilha nelas.[4] É por isso que muitas vezes ela é designada com o nome da virtude na qual resplandece. À verdade da vida dá-se o nome de justiça como afirma a Águia de Hipona: “Penso que são justos os que agem sob a lei eterna” [5]; e por causa da retidão que lhe é essencial, a verdade da vida é também chamada simplesmente de retidão, como comenta a Glosa: “Tem coração reto quem quer o que Deus quer”.[6] É por esse meio que podemos ser da verdade.

Um chamado para todos

Santo Agostinho – Catedral de Colônia, Alemanha

Ao despertar para a vida consciente, a criança observa que no mundo existe uma admirável ordem. Em seguida, impelida instintivamente a buscar o bem e a amar a verdade, olhando para si mesma percebe essa ordem refletida como que num espelho e discerne em seu interior a verdade que procurava. Eis por que Santo Agostinho dizia: “Não saias de ti, mas volta para dentro de ti mesmo, a verdade habita no interior do homem”.[7] Se for fiel a esse primeiro movimento, a criança não tardará em escolher a verdade que descobriu gravada em seu coração por mestra e guia, pois compreende que da fidelidade a ela dependerá a retidão de sua vida. Assim, pois, quanto mais amor ela devotar à verdade, quanto maior for a limpidez em discerni-la e contemplá-la, e maior o entusiasmo com que a abraçar, maiores serão, em consequência, as condições de triunfo que disporá nas inúmeras batalhas que terá em prol da fidelidade.

 Com efeito, quantas e quantas vezes, o justo, se quiser conservar sua retidão será alvo de zombaria ou perseguição. Em quantas ocasiões deverá sustentar sua palavra mesmo com dano para si. Em quantas outras, uma mentira ou injustiça se apresentarão como ótima oportunidade. Apesar de tudo, ele permanece imaculado em sua integridade. A tal pessoa Prof. Plinio Corrêa de Oliveira chamava alma fiel:[8] aquela que viu a verdade, fez o possível para tirar as conclusões que dela pendem, e porque ama a verdade mais que tudo, concluiu com ela um pacto eterno e decidiu-se segui-la incondicionalmente. Por esse motivo está disposto a abandonar qualquer coisa em favor da verdade, ainda que isso represente uma grande renúncia ou lhe custe a própria vida. Assim procede o homem de reto coração, não, porém, com tristeza ou sequer resignação, mas com grande júbilo. Ele tem na própria verdade uma perene fonte de gáudio, encontrando nela sua paga e recompensa. Sabiamente escreveu Teodoreto: “Quando Deus não prometeu prêmio algum aos que lutam na verdade, ela só é tão formosa que pode obrigar aos que a amam sofrer toda sorte de trabalhos por seu amor”.[9] De fato, “Quem tem reto coração há de ver a face de Deus” (Sl 10,7), eis aqui a máxima recompensa do justo: a própria Verdade Eterna e Absoluta.

Lei viva

O corolário de uma vida reta é, para a alma fiel, discernindo o bem e praticando a verdade, converter-se ela própria numa lei viva. Por viver na verdade, o justo levanta dentro de sua alma um muro de separação entre a virtude e o vício, o bem e o mal, a verdade e o erro, de maneira que para ele praticar o mal deve fazer esforço, tem que violentar-se; sua consciência é reta e o torna capaz de distinguir com clareza o bem e o mal em cada situação, fazendo dele um juiz reto – ainda que por vezes severo – para si mesmo. Em uma palavra, essa pessoa merece o elogio que recebeu Natanael do próprio Redentor: “Eis um israelita de verdade, um homem no qual não há fraude” (Jo 1,47).


[1] STEIN, Edith. apud AGUILÓ, Alfonso. É razoável crer? São Paulo: Quadrante, 2006, p. 8.

[2] S. Th. II-II, q. 109, a.2, ad 3.

[3] S. Th. II-II, q. 109, a.2, ad 3.

[4] S. Th. II-II, q. 109, a.3.

[5] AGOSTINHO, Santo. Liv. Arb. I, 15, n. 31.

[6] Glosa Lombardi: ML 191, 325.

[7] AGOSTINHO, Santo. A verdadeira religião, 39, n. 72.

[8] Cf. CORRÊA DE OLIVEIRA, Plinio. O funcionamento mental: O processo lógico e o simbólico. São Paulo, 04 abr. 1960. Palestra.

[9] TEODORETO. Cart. 21 a Euseb., sent. 3.