Redação (21/12/2011, Virgo Flos Carmeli)
G. Lênotre
Auvrigny é um povoado do Thérache, nos confins de L’Aisne, naquela inculta região que confina a Bélgica. Aquele pequeno recanto da França, terra dos trançadores de cestos e bem afastada dos grandes caminhos, permaneceu longo tempo atrasado: no começo da Revolução, Auvrigny não era mais que uma aldeia de cinqüenta vivendas, a pouca distância de uma vasta casa a que chamavam Ao castelo, e que habitava um bom fidalgo camponês, velho celibatário, bastante simples de aspecto e muito acolhedor.
Desde tempos imemoriais a aldeia e o castelo haviam mantido as melhores relações; o Conde d’Auvrigny era caridoso, os aldeões mostravam‑se dedicados, diante do menor embaraço, eles recorriam a seu senhor, que se encarregava de resolver amigavelmente todas as contendas, e que encontravam sempre prontos para defendê‑los, nos seus desentendimentos com a administração das águas e florestas ou com os guardas de Monsieur le duc d’Orléans.
Sem pôr fim a essa bela aliança, a Revolução trouxe um certo resfriamento entre os aldeões e seu senhor. As gazetas não chegavam, é verdade, até Auvrigny; aliás, se chegassem, teriam encontrado tão poucos leitores, que sua influência teria sido mais ou menos nula: entretanto, os Aespíritos fortes se agitavam; não deixavam de ter relações com a cidadezinha de Nouvion e mesmo com Vervins, onde acabava de ser instalado o tribunal das redondezas e, ainda que só através de um vago eco, nada ignoravam do que se passava em Paris.
Tinham vindo de Laon, na época das eleições, senhores cingidos com largos cintos e ataviados como músicos, que pregaram aos camponeses aturdidos os benefícios da igualdade e a felicidade da independência. Não se esqueceram de acrescentar, é claro, que todos os nobres eram falsos como judas e cruéis como Barba‑Azul; mas os camponeses d’Auvrigny conheciam somente um, o qual sempre lhes parecera franco e generoso, de sorte de os discursos dos jacobinos de Laon não haviam produzido neles grande efeito.
O Conde, porém, em nada havia alterados seus hábitos. Como tinha discernimento, e mesmo espírito, nem pensou em emigrar; não tendo nenhum direito de senhor a lamentar, não demonstrou cólera alguma quando da abolição dos privilégios; quando ele viu que, pouco a pouco, os aldeões que sempre tratara como amigos, perdiam o costume, por desconfiança ou altivez, de vir consultá‑lo, continuou como no passado a sua vida de filósofo, que não esperava de ninguém e a quem a opinião alheia não incomoda.
No inverno de 1793, na véspera do Natal, o Conde d’Auvrigny, fiel a um velho costume da região, havia erguido no terraço do castelo um magnífico pinheiro, que cortara no meio do seu jardim, e o carregou de lanterninhas, de fitas, de brinquedos e guloseimas alegremente suspensas nos escuros ramos da árvore. Era de tradição que, cada ano, as crianças da aldeia, sob a direção dos pais, viessem fazer a colheita dessas maravilhas, ao que se segue um suculento doce de cremes e de patês; os cestos das mamães, que tinham chegado vazios, na volta transbordavam de provisões e de aconchegantes malhas; até os homens encontravam nos bolsos de seus sobretudos poeirentas garrafas de vinho ou cântaros de aguardente… Era uma festa com a qual as pessoas se regozijavam dois meses antes, e da qual se falava até a Páscoa.
Ora, neste ano de desgraça, o Conde não achara bom renunciar a esse caridoso hábito, embora percebesse bem, já há algum tempo, que a separação entre a aldeia e o castelo se acentuava. Até ele tivera, nesse dia, a idéia de construir uma belíssima manjedoura, com o Menino Jesus iluminado, deitado sobre a palha numa gruta arranjada ao pé da árvore de Natal, debaixo de grandes folhagens onde uma nuvem de farinha dava impressão de neve. O velho fidalgo, que sentia gosto em presidir ele mesmo a essa animação.
Estava acabando de pôr mãos a obra, quando ouviu baterem à porta do castelo: imaginando que a impaciência de seus convidados antecipava a hora, apressou‑se em acender suas últimas velinhas, quando um doméstico fez chegar junto dele, em lugar da criançada esperada, o prefeito da aldeia ‑ dizia‑se então o Aprocurador‑síndico ‑ chamado Gérard, e seu secretário que se chamava Birou.
O Conde estendeu‑lhes a mão, que eles apertaram com um certo embaraço: os conhecia de longa data, a um e a outro. Gérard, camponês quase analfabeto, não era mau homem; Birou, ao contrário, era invejoso, falador e pretensioso: sabia mal e mal ler e esta superioridade dava‑lhe um prestígio enorme diante dos outros; ele se tinha feito receber como membro do Clube dos Jacobinos de Guise e acabava de fazer a assinatura de uma folha revolucionária, que ele ia decifrando como podia, sem compreender palavra alguma; era ele quem fazia a comuna Aandar, era ele quem igualmente havia conseguido inculcar nos concidadãos que sua dignidade de homens livres não lhes permitia mais conviver com seu ex‑senhor. Este, por sua vez, era muito cauteloso, e, sendo educado por natureza, julgava prudentemente, que não se podia prever Acomo as coisas correriam.
Então Gérard e Birou apresentaram‑se ao Conde d’Auvrigny bastante espantado com essa visita intempestiva. Birou lançou à árvore de Natal um olhar assaz irônico, mas soube se conter; Gérard cumprimentou‑o com ar contraído e, como o fidalgo lhes agradecia por terem posto tanto açodamento em preceder a seus concidadãos, o outro balbuciou:
‑ Oh! não é bem para isso que nós… não é, Birou?
‑ Não, não, replicou Birou debicando forçadamente, não é isso que nos traz.
O Conde convidou‑os a passar para seu escritório e a exporem o motivo da visita, declarando‑se pronto a ouvi‑los enquanto esperava os convidados; mas Birou retomou a palavra:
‑ Bem! para falar claro, cidadão, vossos convidados não virão.
‑ Como?… Por que?…
‑ Eu lamento, sim, eu o lamento! acrescenta depressa Birou. O cidadão Gérard pode dizer‑vos como a coisa me custa… mas eles pensaram… acreditaram …
‑ O quê, enfim?
‑ Que as circunstâncias talvez não permitam a patriotas misturar‑se a certas práticas manchadas de aristocracia…
Era uma frase da gazeta: o Conde morde os lábios.
‑ Vejamos, Birou, diz ele, acreditais que aquilo que era bom há alguns anos atrás possa ser mal hoje?
‑ Não, certamente!… Eu queria dizer outra coisa…
‑ E a menos que a moral tenha mudado, do que eu tenho bem receio, temos nós direito de criticar hoje o que aprovávamos outrora?
Birou, não sentindo força para sustentar a discussão neste tom, desviou a pergunta e retrucou com um argumento que ouvira na Ajacobineira de Guise e que ele repetia a todo propósito, sem lhe compreender o sentido:
‑ Basta de palavras, cidadão – disse. Se nós nos abstemos doravante de vir desfilar diante de vossa árvore de Natal, é que uma manifestação tão pueril revolta a razão e fere a igualdade!
‑ Quando eu tiver tempo, monsieur Birou, respondeu o Conde, podereis explicar‑me no que a imagem do Menino Deus deitado sobre a palha, numa manjedoura pode ofuscar vossos sentimentos igualitários… Mas deixemos de lado isso, e voltaremos a falar de minha árvore de Natal quando os tempos estiverem menos agitados, e as pessoas menos tolas; pois acredito que essa renúncia a um velho hábito que apreciavam vossos pais não vos trará felicidade.
E, como quem despede amavelmente seus visitantes, acrescentou:
‑ Não tendes mais nada a ver comigo?
‑ Perdão, desculpe, cortou Gérard. Eu tinha vindo para vos consultar sobre um assunto muito delicado. Birou, que fala bem, mas fala demais, não me deixou tempo para conversar convosco.
E o bravo prefeito expôs que, durante os três anos que cumpria em Auvrigny as funções de ministro municipal, ele se tinha saído às vezes mal, em suas necessidades; ele lembrou que, muito freqüentemente, no início, viera tomar conselho do castelão; depois se esforçara para guiar‑se pelo seu próprio bom senso e às luzes de seus co‑administrados; mas desta vez o caso era realmente grave; tão grave que ele não havia deixado por menos e vinha se esclarecer junto ao Ahomem mais instruído da comuna@.
Ele recebera, com efeito, na antevéspera, por intermédio do comissário do Executivo de Laon, uma carta do Comité de Salut Publique intimando‑o a redigir, o mais breve possível, a lista dos Asuspeitos@ de Auvrigny.
‑ Ora, prossegue, eu quebrei a cabeça, mas não sei o que é um suspeito… Birou não sabe mais do que eu; consultei Havard, Defquesne, Jendelle, Rendon, todos os cérebros do lugar; nenhum deles jamais ouviu falar de um suspeito. É uma palavra que não conhecemos, e venho aqui para perguntar‑vos se sabeis o que é.
O Conde fixou rapidamente o olhar de seus dois interlocutores, vendo que neles não havia nem sombra de malícia e que o seu embaraço era real, voltou a falar seriamente:
‑ Sim, Asuspeito@ é uma expressão nova que eu também nunca tinha ouvido empregar antes destes últimos tempos… E que uso se deve fazer dessa lista que tendes que redigir?
‑ Eu devo, tão logo esteja escrita, despachar diretamente para o comité de Salut Publique que ‑ vede a carta ‑ tomará imediatamente medidas cabíveis.
‑ Ah, a coisa de fato é urgente. Pois bem, meu bravo Gérard, eis o que o Comitê pede: ele quer apenas conhecer os nomes daqueles dentre os vossos administradores que são os mais destacados desde o começo da Revolução, por seu patriotismo e ódio ao Antigo Regime.
E como Birou espichava as orelhas, o Conde acrescentou negligentemente:
‑ É provável que a Convenção esteja para distribuir empregos e cargos. Os Asuspeitos@, em linguagem oficial designam aqueles que são susceptíveis de obter uma recompensa adicional.
‑ Era o que eu pensava, acentuou Birou.
‑ É natural, Birou; como vós mesmo me dissestes recentemente; AA república derrotou o ídolo do fanatismo e triunfou de todos os seus inimigos; ele agora apenas tem que pensar nos seus amigos… E vedes que ela não se esquece. Eu só lamento uma coisa: não poder figurar nesta lista de honra.
‑ Ora, insinuou complacentemente Gérard, se quiserdes…
‑ Não, não. Meu nome de aristocrata desserviria certamente junto no Comité… além disto, eu nada fiz para merecer vê‑lo ao lado dos vossos, vós que lutastes pela liberdade.
O prefeito parecia prodigiosamente embaraçado.
‑ Então, disse ele, nessa lista de suspeitos ‑ que palavra esquisita! ‑ vou colocar Birou.
‑ Boa idéia; ponha‑o primeiro, bem em cima… Vamos, vamos, acrescentou o Conde voltando‑se para Birou que trejeitava, não vos façais de modesto, tendes direito a isto, Sentai‑vos, Gérard, à mesa e escrevei imediatamente: ALista dos suspeitos da Comuna de Auvrigny…
O camponês, com seus dedos grossos, traçava em caracteres enormes as palavras que ia soletrando a meia‑voz: ele se esforçava tanto que o suor corria por sua testa e a língua lhe pendia entre os dentes; enfim, conseguiu sair‑se com honra.
‑ Pronto! Eis o título; agora, os nomes. Birou primeiro; depois, quem mais? Eu não posso dar só um; seria mesquinho.
‑ É claro, aprovou o Conde. Vos detém a impressão de regatear honras; mas, vejamos, vós colocareis aí a Havard, que grita Aà forca@ quando me vê na aldeia; ele serve; e Rendon, que caça meus faisões sob o pretexto de que o privilégio de caça não existe mais; é outro honroso partidário do novo regime; e Jendelle, que derrubou a cruz do cemitério; e Dequesne, que só nos chama por tu, e não tira mais seu boné da cabeça, só porque a educação é inimiga da igualdade. Esses são os sustentáculos do novo regime…
Gérard escrevia cada um dos nomes que o Conde tinha citado; quando terminou, levantou a cabeça com ar de satisfeito:
‑ E se eu pusesse meu nome também?
‑ Eu não vos aconselho, Gérard ‑ respondeu o Conde. Tem de assinar a lista como regedor da comuna; por isto é mais conveniente não designar a si mesmo.
Com o coração pesado por não figurar nela, o prefeito d’Auvrigny despachou, naquela noite mesmo, sua lista de suspeitos ao Comité de Salut Public. Na aldeia, o rumor do incidente se espalhara: Birou não tinha podido conter‑se e começou a falar; vangloriava‑se de que dali a pouco os senhores do Comité o chamariam a Paris para entregar‑lhe uma recompensa em dinheiro, talvez, ou uma boa colocação, acompanhada de uma coroa cívica.
Por isto não faltou quem o invejasse quando numa bela manhã sua casa foi invadida pela Guarda de Neuvion, sob a direção de um agente do Comité de Sureté Génerale, o qual obrigou Birou a subir numa bela carruagem sobre a qual distinguia‑se ainda, apesar das arranhaduras, o escudo fleurdelizados dos Orléans. Jendelle e os outros foram presos da mesma maneira e, à noite, tomando a sopa, Gérard não pode deixar de suspirar, dizendo à esposa:
‑ Se o Conde me tivesse deixado fazer o que eu queria, à esta hora eu estaria rolando com eles para Paris.
Ao que ela respondeu secamente:
‑ Isto te ensinará a escutar os conselhos de um ex‑nobre!
‑ É boa lição para aprender a ouvir conselhos de nobres!
De fato, Gérard não voltou a pôr os pés no castelo; que o aborrecia; o Conde, também, não vinha quase à aldeia. Mas um dia teve que ir ao ferreiro e ficou impressionado com o silêncio e aspecto deserto da cidadezinha; procurou informar‑se junto a um velho homem que o cumprimentara, à moda antiga.
‑ Ah! senhor Conde, respondeu este, não há pessoas válidas na aldeia; vós bem sabeis que o governo pediu os nomes daqueles que devia recompensar e o prefeito escolheu cinco que foram logo em seguida chamados a Paris; mas, vendo isto, os outros não o deixaram mais no sossego e Gérard se viu forçado a redigir uma Asegunda lista dos suspeitos da comuna d’Auvrigny@ onde colocou, quase todo o mundo; ele mesmo não resistiu ao prazer de colocar seu próprio nome, de sorte que se viu chegar um dia toda a brigada de Vervins, com uma grande carroça, que levou a todos, que saíram alegres e cantarolado; mas parece que o lugar que lhes deram é bem atraente, pois não há um só que tenha mandado notícias.
Foi assim que o Conde d’Auvrigny, aristocrata confessado, desembaraçou‑se de vizinhos incômodos e viveu tranqüilamente em seu castelo durante todo o Terror, enquanto seus aldeões se encontravam, com dez mil outros, todos igualmente inofensivos e sem culpa, nas prisões de Paris. Quando veio o Thermidor, o fidalgo fez quanto pôde para obter a liberdade deles; mas havia tantas injustiças a reparar que meses passaram sem que ele tivesse êxito.
Tornara‑se, entretanto, o pai e provedor da aldeia, que só continha agora velhos, mulheres e crianças; ele tinha sempre a mesa e a bolsa aberta para esses pobres que nada faziam sem tomar sua opinião e que o consideravam como sua providência; Auvrigny havia retornado aos velhos tempos de antes de 69, quando a aldeia e o castelo se confraternizavam; os camponeses outro recurso não tinham que a generosidade de seu senhor. Chamavam‑no, como outrora, AMonsieur le Comte@ e respeitavam seus faisões; ele, por sua vez, continuava a não manifestar nenhum espanto com as reviravoltas sucessivas por que passara, diante de sua vista, o espírito de população.
Observou‑se apenas que nas proximidades do inverno ele fez várias viagens a Paris: compreendeu‑se o motivo quando foram vistos, alguns dias do fim do ano de 1794, reentrando em Auvrigny, um por um, e bastante sem jeito, os Asuspeitos@ que a tinham deixado, tão eufóricos, alguns meses atrás; continuavam bastante sóbrios de detalhes a respeito de sua aventura da qual não compreendiam grande coisa, mas não se esgotavam de louvores para com o Conde que se tinha desdobrado em zelo infatigável para fazê‑los sair da prisão.
Também houve multidão no castelo, na véspera daquele Natal. O Conde não tinha feito convites, entretanto; se ele tivesse erguido a árvore tradicional, mais carregada de surpresas ainda que de ordinário, seria ‑ parece ‑ para sua satisfação pessoal. Toda a aldeia lá estava, respeitosa de reconhecimento. E como o prefeito Gérard se colocava modestamente atrás de seus administradores.
‑ Ah! Senhor Conde, disse o camponês, se eu não vos tivesse escutado! Vós me destes uma lição!…
‑ Então, Gérard, nenhum rancor?
‑ Nem sombra, Senhor Conde, pois se eu soubesse, na verdade, o que era um suspeito, seria vós, apenas, que eu teria posto na lista; teria feito essa baixeza. Quando penso nisto, sinto até calafrios.
‑ E então?
‑ Então? eu vi como eram as coisas em Paris. De lá vós não teríeis retornado; mas nós camponeses, fomos logo esquecidos, na multidão. Só Birou…
‑ O que houve com ele?
‑ Vós conheceis bem. Era teimoso. Ele gritou tanto na prisão, protestando que tinha direito a uma recompensa e exigia uma colocação, que decidiram dar‑lhe uma: incorporaram‑no à décima‑segunda brigada; agora é cabo no regimento de Gévaudea.
Como ambos iam chegando bem próximos da manjedoura toda iluminada, Gérard, mostrando ao fidalgo os rostos extasiados das crianças que passavam de mão em mão os brinquedos arrancados da árvore, acrescentou:
‑ Talvez, Senhor Conde, bem que ele daria todos seus galões para estar aqui essa noite conosco.
Fonte: LENOTRE, G. Légendes de Noel.