A Santíssima Virgem e a Liturgia: um tema da atualidade

Redação (01/06/2014, Virgo Flos Carmeli) As profundas e vertiginosas mudanças nas quais a sociedade atual se encontra submetida, faz a Igreja refletir sobre como adequadamente enfrentar este problema. Já o papa Paulo VI, na exortação apostólica Evangelii Nuntiandi nos explicava de uma maneira muito incisiva: “sabemos bem que o homem moderno, saturado de discursos, se demonstra muitas vezes cansado de ouvir e, pior ainda, como que imunizado contra a palavra. Conhecemos também as opiniões de numerosos psicólogos e sociólogos, que afirmam ter o homem moderno ultrapassado já a civilização da palavra, que se tornou praticamente ineficaz e inútil, e estar a viver, hoje em dia, na civilização da imagem.”[1]

Com o passar dos anos, o processo de secularização e de relativismo em nossa sociedade – outrora totalmente cristã – se faz cada vez maior. A tal ponto que o Papa Bento XVI pronunciou um apelo aos jovens católicos, para que todos tenham uma radicalidade de seu testemunho da fé e lutem contra esta onda de relativismo e mediocridade que pretende eclipsar a presença de Deus na sociedade hodierna: “a cultura atual, em algumas áreas do mundo, sobretudo no Ocidente, tende a excluir Deus, ou a considerar a fé como um fato privado, sem qualquer relevância para a vida social. Mas o conjunto de valores que estão na base da sociedade provém do Evangelho — como o sentido da dignidade da pessoa, da solidariedade, do trabalho e da família —, constata-se uma espécie de “eclipse de Deus”, uma certa amnésia, ou até uma verdadeira rejeição do Cristianismo e uma negação do tesouro da fé recebida, com o risco de perder a própria identidade profunda.”[2]

Daqui compreendemos o papel fundamental que tem a liturgia como um meio eficaz de ensinar e atrair à casa de Deus os seus filhos afastados, pois este foi o instrumento idôneo utilizado pela Igreja através da história. Santo Irineu de Lyon ao falar sobre a Regula fidei, nos recorda que corresponde ao Magistério, não somente o papel de guardião da Escritura e da Tradição dos Apóstolos, mas também de ser dócil ao Espírito Santo na interpretação no ensinamento do depósito sagrado, sendo a liturgia um dos pilares da Tradição.

O bispo de Lyon expressa ser a Igreja “tal como um depósito de grande valor encerrado num vaso excelente, que rejuvenesce e faz rejuvenescer o próprio vaso que a contém”.[3] Desta forma a liturgia ao longo da História é o meio privilegiado que a Igreja teve de converter, catequizar e santificar o Povo de Deus como também atrair para si os pagãos. A este propósito é interessante a intervenção que o papa Paulo VI fez no Congresso Mariológico de 1975, na qual busca tirar o impasse que o post Concilio deixou à investigação teológica sobre Maria: “como repropor adequadamente Maria ao Povo de Deus, de modo a despertar nele um fervor renovado de devoção mariana? Neste sentido, podem-se seguir dois caminhos. O primeiro é o caminho da verdade, isto é, da especulação bíblico-histórico-teológica, que diz respeito à colocação de Maria no mistério de Cristo e da Igreja: é o caminho dos sábios, aquele que vós seguis, certamente necessário, do qual se progride a doutrina mariológica. Mas há também, além disso, uma via acessível a todos, até mesmo às almas simples: é o caminho da beleza, o que nos leva, finalmente, à doutrina misteriosa, maravilhosa e estupenda que forma o tema do Congresso Mariano: Maria e o Espírito Santo. Na verdade, Maria é a criatura tota pulchra, é a speculum sine macula; é o mais alto ideal de perfeição que em todos os tempos os artistas procuraram reproduzir em suas obras; é ‘a mulher vestida de sol’ (Ap . 12, 1), na qual os raios puríssimos da beleza humana se reúnem aqueles soberanos, mas acessíveis, da beleza sobrenatural. E por que tudo isso? Porque Maria é ‘cheia de graça’, isto é, podemos dizer, a cheia do Espírito Santo, a luz da qual n’Ela refulge de um incomparável esplendor. Sim, precisamos olhar para Maria, para fixar a sua beleza imaculada, porque nossos olhos muitas vezes são feridos e quase cegados pelas enganadoras imagens de belezas deste mundo. Quantos nobres sentimentos, quantos desejos de pureza, qual espiritualidade renovadora poderia suscitar a contemplação desta sublime beleza!”[4]

Atender este apelo do Papa sobre a via pulchritudinis mariólogica corresponde à ação da liturgia: a qual com as suas diversas cerimônias, os seus variados ritos e devoções populares, catequiza os fiéis, ensinando-os a doutrina “misteriosa, maravilhosa e estupenda”, a que se refere o saudoso Pontífice.

Recordando as palavras citadas acima de Santo Irineu, o Espírito Santo inspira na Igreja carisma e devoções diversas que ajuda a Ela mesma conhecer a grandeza e a Magnificência do Criador. Desde os seus primórdios a Esposa de Cristo soube desenvolver na sua liturgia algo de muito do seu apreço: a devoção à Theotokos, a Santa Mãe de Deus, nascida do sensus fidelium popular, que intuía que Ela era o caminho mais fácil para chegar seu Filho Santíssimo, nosso Redentor. A sabedoria da Igreja soube perceber este “signum magnum” (Ap 12,1) e desta maneira cultivou e enriqueceu nas celebrações litúrgicas esta devoção nascida do povo de Deus, pois “tanto no Oriente como no Ocidente, as expressões mais altas e mais límpidas da piedade para com a bem-aventurada Virgem Maria floresceram no âmbito da Liturgia, ou então nela foram incorporadas.”[5]

Pe.  Felipe Isaac Paschoal Rocha, EP


[1] “Qui sunt hodie homines, eos novimus, orationibus iam saturatos, saepe saepius audiendi fastidientes atque – quod peius est – contra verba obdurescentes videri. Neque vero sententias plurimorum psychologicis socialibusque rebus doctorum ignoramus, qui eosdem dicunt civilem cultum, a verbis appellatum, utpote inefficacem iam et inutilem esse praetergressos, atque in praesenti novum attigisse vitae cultum, ab imaginibus appellandum”. PAULO VI. Evangelii Nuntiandi,  08 dez. 1975. In: AAS 68 (1976) 42. p. 32. (Tradução disponível em: http://www.vatican.va/holy_father/paul_vi/apost_exhortations/documents/hf_p-vi_exh_19751208_evangelii-nuntiandi_po.html, acesso em 21 ago. 2011).

[2] “La cultura attuale, in alcune aree del mondo, soprattutto in Occidente, tende ad escludere Dio, o a considerare la fede come un fatto privato, senza alcuna rilevanza nella vita sociale. Mentre l’insieme dei valori che sono alla base della società proviene dal Vangelo — come il senso della dignità della persona, della solidarietà, del lavoro e della famiglia —, si constata una sorta di ≪ eclissi di Dio ≫, una certa amnesia, se non un vero rifiuto del Cristianesimo e una negazione del tesoro della fede ricevuta, col rischio di perdere la propria identità profonda”. BENTO XVI. Mensagem para a XXVI Jornada Mundial da Juventude 2011, 06 ago. 2010. In: AAS 102 (2010) 1. p. 460. (Tradução do autor).

[3] “Quasi in vaso bono eximium quoddam depositum iuvenescens, et iuvenescere faciens ipsum vas in quo est”. IRINEU DE LYON. Adversus haereses III, 24, 1. (Tradução do autor).

[4] “Qua nova aptaque ratione Maria christiano populo proponenda est, ut in eo marialis pietatis renovatum studium excitetur? Hac in re duplex nobis panditur via, atque in primis via veritatis: via scilicet investigationis biblicae, historicae ac theologicae, spectantis ad locum Mariae proprium statuendum in mysterio Christi et Ecclesiae; quam viam, doctorum nempe virorum viam, vos sequimini, eademque perutilis est ad mariologiae studia provehenda. Sed alia via est, et quidem omnibus pervia, humilions etiam condicionis hominibus, quam

viam pulchritudinis appellamus : ad quam viam tandem perducit ipsa arcana, mirabilis ac pulcherrima doctrina de Maria et Spiritu Sancto, in qua studia Congressus Mariani versari debent. Ac revera Maria « tota pulchra » est eademque « speculum sine macula » ; item exstat supremum atque absolutissimum perfectionis exemplar, cuius imaginem omni tempore artifices in suis operibus effingere conati sunt; Mulier amicta sole est, in quam purissimi humanae pulchritudinis radii una confluunt cum radiis pulchritudinis caelestis, qui superioris quidem sunt ordinis, sed percipi possunt. Curnam haec omnia? Quia Maria « plena gratia » est, hoc est — ita dicere possumus — quia plena est Spiritu Sancto, cuius supernaturale lumen in ea incomparabili splendore refulget.

Profecto, nobis opus est ad Mariam adspicere in eiusque inconta minatam pulchritudinem oculos convertere, quippe quos saepe nimis offendant et quasi obcaecent fallaces pulchritudinis imagines huius mundi. Contemplatio excelsae Mariae pulchritudinis, ex contrario, quot egregios animi sensus gignere potest, quot generosa proposita puritatis, quot invitamenta ad pietatis rationem amplectendam, quae vere animos renovet”.

PAULO VI. Discurso ao Congresso Mariólogico e Mariano, 16 maio 1975. In: AAS 67 (1975) 3. p. 338. (Tradução do autor).

[5] “Tum in Orientis tum in Occidentis regionibus lectissimas atque splendidissimas voces pietatis erga beatam Virginem aut intra ipsius Liturgiae fines floruisse, aut esse in eius corpus adiunctam”. PAULO VI. Marialis Cultus, 2 fev. 1974. In: AAS 66 (1974) 15. p. 127. (Tradução disponível em: http://www.vatican.va/holy_father/paul_vi/apost_exhortations/documents/hf_p-vi_exh_19740202_marialis-cultus_po.html, acesso em 10 out. 2011).