Mons. João Scognamiglio Clá Dias, EP
Redação (14/06/2012, Virgo Flos Carmeli) A silhueta desse quase anacoreta do deserto, São João Batista[1], o Precursor, surge como “figura única na História, aureolada de um prestígio sobre-humano que se ergue misteriosa e solenemente no encontro dos dois Testamentos”[2], pois foi essa a opinião sobre ele enunciada pelo próprio Redentor: “Em verdade vos digo: entre os nascidos de mulher não apareceu ninguém maior do que João Batista. (…) Porque todos os Profetas e a Lei anunciaram isto até João. E quer acrediteis ou não, ele é o Elias que estava para vir” (Mt 11, 11-14). Nesse mesmo sentido opina São Tomás de Aquino, afirmando que São João Batista foi o fecho da Antiga Lei e a abertura da Nova, isto é, a era do Evangelho[3].
Profecias sobre o Precursor
A própria Liturgia de hoje é envolta em mistério ao narrar o procedimento utilizado para a escolha de seu nome, como mais adiante veremos. Essa atmosfera que o cercava manifestou-se nos primeiros anúncios de seu futuro aparecimento. Lá pelo ano de 450 a.C., estas foram as palavras proféticas de Malaquias: “Eis que vou enviar o meu mensageiro, a fim de que ele prepare o caminho à minha frente” (Ml 3, 1). Já muito antes (por volta de 539 a.C., quando Ciro, rei da Pérsia, derrotou o rei da Babilônia, Nabônides, e publicou em seguida um edito libertando os judeus), o Dêutero-Isaías anunciava a missão do Precursor: “Uma voz clama: Preparai no deserto o caminho do Senhor, aplanai na estepe uma estrada para o nosso Deus. Todo vale seja levantado, e todas as colinas e montanhas sejam abaixadas, todos os cumes sejam aplanados, e todos os terrenos escarpados sejam nivelados” (Is 40, 3-4).
É grandioso e belo o anúncio mais imediato de sua concepção e missão. Zacarias, sacerdote no Templo de Jerusalém, cumpria seu turno apesar de estar em avançada idade, sem ter tido descendentes e, ademais, sem possibilidade de os vir a gerar. Chegara o momento de ele oferecer o incenso ao Senhor, enquanto o povo o aguardava do lado de fora. O mesmo Arcanjo São Gabriel que seis meses mais tarde estaria diante da Santíssima Virgem para anunciar a Encarnação do Verbo, lhe apareceu enchendo-o de temor, mas tranqüilizando-o em seguida com estas promessas: “Não temas, Zacarias: a tua súplica foi atendida. Isabel, tua esposa, vai dar-te um filho e tu vais chamar-lhe João. Será motivo de regozijo e de júbilo, e muitos se alegrarão com o seu nascimento. Pois ele será grande diante do Senhor e não beberá vinho nem bebida alcoólica; será cheio do Espírito Santo já desde o ventre de sua mãe e reconduzirá muitos filhos de Israel ao Senhor, seu Deus. Irá à frente, diante do Senhor, com o espírito e o poder de Elias, para fazer voltar os corações dos pais a seus filhos e os rebeldes à sabedoria dos justos, a fim de proporcionar ao Senhor um povo com boas disposições” (Lc 1, 13-17).
Varão com o “espírito e o poder de Elias”
Assim, João apareceria como o filho da oração proferida por um sacerdote no Templo de Jerusalém, penetrado de enorme alegria por saber que terá em sua descendência um homem de grandeza na presença do Altíssimo; a esse futuro varão seriam concedidos “o espírito e o poder de Elias”. Entretanto, não fará uso desses dons como o fez seu antecessor contra os sacerdotes de Baal ou face aos capitães e soldados de Acab. Por isso frustrará as febricitantes expectativas do povo judeu com relação a um Messias portentoso, nimbado de toda espécie de glória política e social. Ele pregará a mudança de mentalidade (metanóia) na linha de uma profunda e autêntica harmonia, seja no âmbito familiar, seja abrangendo dos rebeldes aos justos, e assim procurará criar as condições necessárias para a vinda do Messias. Para tal, tornava-se necessária a sua própria purificação, inclusive da mancha do pecado original. Essa foi uma das principais razões pelas quais a Virgem Maria empreendeu penosa viagem com o intuito de auxiliar sua prima. Ao entrar na casa de Isabel, esta “ ficou cheia do Espírito Santo” (Lc 1, 41) e fez a bela confissão: “logo que chegou aos meus ouvidos a tua saudação, o menino saltou de alegria no meu seio” (Lc 1, 44).
Seu nascimento foi também incomum, pois àquela idade era impossível Isabel vir a conceber, a ponto de Zacarias ter sido insuficiente em sua fé, ao ouvir as claras palavras de São Gabriel: “Como hei de verificar isso, se estou velho e a minha esposa é de idade avançada?” (Lc 1, 18). Essa reação bem comprova a grandeza do milagre que seis meses após foi confirmado pelo próprio Arcanjo: “Isabel, tua parenta, concebeu um filho na sua velhice e já está no sexto mês, ela, a quem chamavam de estéril, porque nada é impossível a Deus” (Lc 1, 36-37). Se as circunstâncias humanas que cercaram sua vinda a este mundo foram singulares, mais ainda intensas se tornaram as sobrenaturais, a ponto de um santo temor penetrar o interior dos que tomavam conhecimento dos fatos. A memória de todos foi marcada de maneira indelével, levando-os a se perguntar inúmeras vezes: “Quem vai ser este menino?” (Lc 1, 66). O próprio pai, assumido pelo Espírito Santo, responderia em seu cântico: “E tu, menino, serás chamado profeta do Altíssimo, porque irás à sua frente a preparar os seus caminhos, para dar a conhecer ao seu povo a salvação pela remissão dos pecados” (Lc 1, 76-77).
Educado pelo Espírito Santo
Seu crescimento e educação se deram em meio a uma atmosfera feita de contemplação, penitência e contínua oração. Deus foi seu mestre, a ascese sua companhia, e sua via a santidade, daí o fortalecimento de seu espírito (cf. Lc 1, 80). Deduz-se de seu modo de ser e agir o quanto ele foi cheio do Espírito Santo “desde o seio de sua mãe” (Lc 1, 25) e quão grande sua docilidade em seguir seus ensinamentos.
“Mais que um profeta”
Quando chegou o momento de realizar sua missão pública, apresentou-se revestido de trajes inteiramente fora dos costumes da época: “um vestido feito de peles de camelo e um cinto de couro em volta dos rins”, e sua alimentação não passava de “gafanhotos e mel silvestre” (Mt 3, 4). Assumiu o papel de profeta sem o declarar abertamente, mas, aqui também, suas características o colocam acima de todos os que o antecederam, ele foi “mais que um profeta” (Mt 11, 9). Por isso São Roberto Belarmino, em um de seus sermões, comenta o quanto foi glorioso para São João o ter apontado para um Messias de aparências tão humildes e, apesar disso, ter tido a ousadia de chamá-Lo de “Cordeiro de Deus” (Jo 1, 29), de “Filho de Deus” (Jo 1, 34); e ademais, devido à sua imediata proximidade com o Salvador, recebeu a maior das clarividências sobre Ele. Nenhum profeta anterior gozou de tão alto discernimento. Todos anunciavam um futuro, enquanto João apontava o Salvador em sua presença. Por sua conduta, chegou a impor respeito até em Herodes (cf. Mc 4, 20), medo nos fariseus (cf. Mt 14, 5), e obteve altíssimos elogios dos divinos lábios de Jesus (cf. Mt 11, 11), tendo sido classificado como o maior homem aparecido até então. Sua fama se espalhou de tal forma que pessoas de toda a Judéia e os habitantes de Jerusalém procuravam João (cf. Mc 1, 5) para receber o batismo, entre eles o próprio Jesus Cristo (cf. Mc 1, 9-11; Mt 3, 16-17; Lc 3, 21-22; Jo 1, 31-34). As multidões, publicanos e soldados, lhe perguntavam: “Mestre, que devemos fazer?” (Lc 3, 10-14).
Sua alma jamais experimentou a soberba
Se prestarmos uma atenção mais acurada nessa grandeza de São João, veremos o quanto ela não tinha notas humanas nem sócio-políticas, tão do anseio do povo eleito, naquelas circunstâncias históricas. Ele era um grande homem, o maior, mas no campo sobrenatural e por ação da graça. E era justamente por obra desta que defluíam sua despretensão, humildade e desprendimento. Sua alma jamais experimentou a soberba, a vanglória ou a ambição, vícios tão universais e companheiros de todas as classes, idades e funções. São paixões que despontam com o uso da razão ou, talvez, até a antecedam; elas promovem o quase irrefreável anseio de ser conhecido, elogiado e amado. Freqüentemente tisnam a inocência primeva e empanam a candura das crianças. “A soberba (…) busca a excelência de forma desordenada, ao passo que a vanglória almeja a manifestação da excelência”[4]. A soberba “apresenta certa generalidade, porque dela podem surgir todos os pecados (…) pela soberba, o homem despreza a Lei divina que proíbe pecar, segundo se lê em Jeremias: ‘Há muito quebraste teu jugo, rompeste teus laços, dizendo: não vou servir a ninguém’” [5].
Vanglória: glória sem honra
Assim, pelo fato de nos amarmos de maneira indevida, julgamo-nos com o direito de sermos glorificados pelos outros, desejamos sofregamente os elogios e aplausos e sentimo-nos ultrajados pelo sucesso dos demais: a tristeza dos bens alheios, tão freqüente em inúmeras almas.
A soberba e sua filha primogênita, a vanglória, não conhecem limites nem barreiras, penetram até os sagrados umbrais da vida religiosa. É o que nos dá a entender a grande Santa Teresa:
“Livre-nos Deus de pessoas que querem servi-Lo, mas se preocupam com as honrarias. Vede que é mau negócio. E, como já disse, pelo próprio ato de desejar as honras, a pessoa as perde, especialmente em questões de precedências, pois não existe no mundo veneno mais mortal para a perfeição. Direis que são ninharias das quais não se deve fazer caso; não vos enganeis, porque isso cresce rapidamente e não há matéria mais perigosa do que essas questões de honras e a preocupação com insultos recebidos”[6].
Parágrafos antes, dizia a mesma Santa de Ávila:
“Deus nos livre, por sua Paixão, de dizer ou pensar, de deter-se em considerações tais como: se sou mais antiga, se tenho mais idade, se trabalhei mais, se tratam a outra melhor do que a mim. Pensamentos como estes, se ocorrerem, devem ser logo cortados, pois se a pessoa neles se detém, ou os põe em prática, é uma pestilência da qual nascem grandes males”[7].
Infelizmente, os piores efeitos dessa paixão se propagam nas sagradas fileiras das almas que se entregam ao pleno serviço de Deus, daí o famoso ditado: “Tolle inanem gloriam de clero, et facile omnia vitia resecabis.” — Tira a vanglória do clero e arrancarás facilmente todos os vícios[8]. Às vezes a soberba se manifesta de forma coletiva, com enormes prejuízos para a caridade e dando ocasião a escândalos. Nesses casos, procura-se a glória de Deus como pretexto para obter a glorificação própria. Daí nasce também a inveja coletiva.
João rejeitou a glória e cresceu em honra
No extremo oposto a esses desequilíbrios, João verá o lento apagamento de sua obra, o de seu próprio nome e até o de seus discípulos, porque um outro Varão o sucedeu, muito mais luminoso do que ele. Porém, diante desse quadro, em nada se sentirá humilhado; ele se tornou o exemplo para tantas almas santas que — na escuridão dos claustros, ou no silêncio interior em meio à agitação do mundo, sacerdotes, religiosas, ou até mesmo no lar, desconhecidas, esquecidas, e às vezes desprezadas — repetem com o Precursor: “Illum oportet crescere, me autem minui” — É preciso que Ele cresça e que eu diminua (Jo 3, 30).
São unânimes todos os comentaristas em atribuir ao Precursor um especial empenho em ter querido extirpar de seus discípulos a inveja de grupo, pelo fato de se terem comparado com Jesus e os Apóstolos. Essa foi a razão pela qual enviou uma embaixada (cf. Mt 11) ao Cordeiro de Deus, pois desejava curar a mesquinhez de coração de seus seguidores e, provavelmente, consagrá-los ao Divino Mestre.
“O seu nome é João”
Desde séculos, entre os judeus, a escolha do nome era um ato inseparável da cerimônia de circuncisão, que se realizava na presença de pelo menos dez testemunhas. Logo após as orações de acordo com o rito, impunha-se o nome, o qual mais comumente coincidia com o do próprio pai, ou se referia a alguma característica espiritual ou física do nascituro, ou a algo que tivesse marcado a vida de seus pais ou ancestrais[9].
A cerimônia finalizava com um pequeno ágape.
A escolha do nome, geralmente, era uma prerrogativa paterna, se bem possa ter havido algumas exceções ao longo da História, como constatamos no trecho do Evangelho de hoje: “Interveio, porém, sua mãe e disse: “Não; mas será chamado João”. Não nos equivocaríamos ao imaginarmos os esforços de Zacarias, durante o período de sua mudez, para transmitir a Isabel os detalhes da aparição de Gabriel. Ela, como mãe, deveria, por sua vez, tentar de todas as maneiras possíveis saber as minúcias daquele grandioso acontecimento.
A reação dos circunstantes talvez partisse do desejo de consolar Zacarias, já ancião, vendo no seu unigênito a perpetuação de seu próprio nominativo. Mas a decisão coube ao progenitor que, requisitando uma tabuinha, escreveu: “O seu nome é João”. Ato que marcou não só a definição do Precursor, mas o término do castigo imposto por Gabriel: “E logo se abriu a sua boca e soltou-se a língua”. Quando Zacarias pronunciou seu cântico, todos julgaram terem discernido o motivo do nome “João”, ou seja, “aquele que anuncia”, mas, na realidade, só post factum chegou-se a entender a fundo sua missão de Precursor e o porquê de suas características pessoais. Ele pôde criar um clima contrário à influência dos fariseus, escribas e sacerdotes da época, ao incentivar a penitência, a mudança de mentalidade e a conversão. Não lhe coube realizar um só milagre e nada na linha do espetacular, pois era preciso vincar a perspectiva de um Messias que Se apresentaria como manso e humilde: “Aprendei de Mim que sou manso e humilde de coração” (Mt 11, 29).
Pórtico de entrada da missão do Messias
Em meio a esse apagamento quanto aos milagres, entretanto, o Batista foi eleito para constituir-se nos umbrais que deram entrada ao Messias em sua missão pública: “Eis o Cordeiro de Deus” (Jo 1, 29). Seu profundo ascetismo e sua própria pregação tornavam-no bem diferenciado de anteriores líderes revolucionários de cunho acentuadamente político. João atraiu a si muita gente, de todas as partes, e até da própria Jerusalém que, preocupada com a movimentação, enviou-lhe uma embaixada para inquirir ao certo quem era ele. Os Evangelhos quase sempre apresentam as autoridades da época como malévolas, invejosas e incrédulas. Entre elas estavam, além de saduceus, levitas e sacerdotes, os famosos fariseus. Todos eles recusaram fortemente não só o batismo como a própria doutrina de João (cf. Lc 7, 33).
O deserto, imagem das almas sem honra
A essa embaixada enviada pelo Sinédrio e constituída de fariseus (cf. Jo 1, 19-28), ele declarou ser a voz que clamava no deserto; imagem robusta para simbolizar o vazio das almas sem honra, a inconsistência de areia dos vícios, o fervilhar das paixões. Aqueles terrenos estéreis deveriam tornar-se sólidos e férteis para receber o Messias.
Os males que haviam entibiado a todos encontravam-se condensados numa fonte que foi denunciada pelo próprio Precursor: “Raça de víboras, quem vos ensinou a fugir da cólera vindoura? (…) Não digais dentro de vós: Nós temos Abraão por pai!” (Mt 3, 7.9).
E mais tarde o Salvador lhes dirá: “Como podeis crer, vós que recebeis a glória uns dos outros, e não buscais a glória que é só de Deus?” (Jo 5, 44).
Por aí se vê o perfeito imbricamento entre as missões do Precursor e do Emanuel, “aquele que anuncia” e o “Deus entre nós”. Ambos quiseram conferir-nos a verdadeira honra para tornar autêntica a nossa glória.
O deserto de nossa Época
Essa pregação de João nos vale até hoje e permanecerá indispensável até a consumação dos séculos, dado o orgulho que herdamos desde nossa saída do Paraíso. Vício que nos segue a cada passo até a hora de nossa morte.
E se João retornasse nos dias de hoje, apareceria ele como uma voz que clama no deserto? Basta lançar um olhar atento sobre a aridez de nossa atual humanidade que, depois de perder a noção de pecado, não mais levanta os olhos a Deus e não se cansa de aplicar todos os esforços para ressecar na fonte o orvalho da graça que nos cai do Céu.
Resta-nos implorar que, como há dois milênios, novamente as preces da Virgem de Nazaré façam chover o Justo sobre este terrível deserto em que na atualidade existimos e nos movemos.
[1] Nota do Editor: Somente a primeira frase do primeiro parágrafo foi levemente adaptada do original publicado por Mons. João Clá, EP a fim de adapta o texto para o post. O título do post também foi adaptado e não condiz com o original. O trecho do artigo é extraído de: Mons. João Scognamiglio Clá Dias, EP. Sem honra não há verdadeira glória. Comentário ao Evangelho da Solenidade do nascimento de São João Batista. Revista Arautos do Evangelho. A. 6. N. 66. Junho, 2007. p. 14-19.
[2] Tertull., “Ad Marc.” – 33: PL 2, 471.
[3] Cf. Suma Teológica III, q. 38, a. 1, ad 2.
[4] São Tomás de Aquino, Suma Teológica, II-II, q. 162, a. 8, ad 2.
[5] Idem, II-II, q. 162, a. 2.
[6] Camino de Perfección, c. 12, 6-7.
[7] Idem, c. 12, 3-4.
[8] Apud São Tomas de Aquino, Super Evangelium S. Matthaei lectura, c. 23, l. 1.
[9] Cf. São Tomás de Aquino, Suma Teológica III, q. 37 a. 2.