Redação (25/09/2013, Virgo Flos Carmeli)
Estética fundamentada
A vida diária, tal como se apresenta em nosso dias, oferece-nos constantemente impressões, informações e situações que exigem um juízo ou pelo menos uma análise, sob pena de adquirirmos ideias com as quais não concordamos, ou assimilarmos conceitos que não traduzem fidedignamente o que pensamos. Esta situação dá-se em todos os campos do agir humano, entretanto, cada um deles exige diferentes graus de esforço. Aqueles princípios que se nos apresentam explicita e esporadicamente são, sem dúvida, mais fáceis de classificar do que outros de caráter dissimulado e repetitivo. Estes últimos encontram-se, muitas das vezes, encobertos sob uma escultura, um quadro ou até sob a disposição do mobiliário de uma sala. É sobretudo experiência estética que podemos encontrar princípios de índole até metafísica, mas que contudo, de difícil explicitação.
Neste artigo propomo-nos a tratar sobre o relacionamento existente entre a estética e a metafísica, e ainda, como estes se devem harmonizar com a funcionalidade. Nosso artigo será baseado no Prof. Plinio Correa de Oliveira. Tendo partido do estudo dos primeiros princípios, era necessário encontrar um autor que, não só tivesse estudado o processo da contemplação estética em relação com esses, mas que sobretudo pudesse descrever como, desde a mais tenra infância, analisou em si esse fenômeno. Nas conferências do Prof. Plinio pudemos encontrar este contributo inédito e, ao mesmo tempo, essencial para melhor aprofundar as investigações que nos propomos fazer.
Primeiros princípios e Estética
Existem na alma humana, desde sua concepção, certos conceitos do intelecto. Não propriamente ideias inatas, mas algo à forma de semina scientiarum[1]. O principal deste princípios, e no qual os restantes encontram sua procedência, é o de identidade, segundo o qual o ser é, e o não-ser não é. Tais considerações são particularmente evidentes nas crianças que, por se encontrarem mais próximas da inocência, e por tanto da inerrância, possuem certa integridade inicial. Isto importa muito na construção de raciocínios e de um edifício de certezas solidamente fundamentado. A este respeito, numa ocasião em que comentava a inocência nas crianças, afirmava o Prof. Plinio Correa de Oliveira:
“A posse da inocência importa em ter uma noção primeva (ou primeira) cristalina, da perfeição originária de todas as coisas. (…) Em sua alma existem os primeiros elementos de um conhecimento racional, aliado aos primórdios de um amor cognoscitivo.
“Este primeiro conhecimento tem na aparência profundidades racionais assombrosas e também superficialidades não racionais espantosas. Não se sabe bem como é que esses conhecimentos convivem! Mas na realidade se conjugam perfeitamente.
“Vem daí que a criança fica vermelha quando se diz que o que fez é feio. Para educá-la, dizer que fazer alguma coisa é «feio» é mais cogente do que dizer que é «errado». E isto é muito significativo.”[2]
Torna-se evidente deste modo que, nesta relação da inocência com os primeiros princípios é de maior importância relacionar um acto de carácter ético com o transcendental pulchrum do que propriamente com o verum. Fato de si surpreendente dada a relação dos princípios iniciais com o conhecimento humano. Entretanto, no homem, existe uma relação especialmente profunda em matéria de influências no que toca a este primeiro transcendental e que seria estudada propriamente pela estética.
Esta disciplina encontra dois fundamentos para apoiar suas considerações: a imagem do Homem com Deus, e os primeiros princípios, com base nos quais pode-se afirmar que uma maça não é um copo e, portanto, estabelecer os fundamentos mais elementares de uma análise estética. Fica assim ressaltada a importância dos primeiros princípios para a experiência estética. A qual não é de se desvalorizar visto que, constantemente, o homem sente-se impelido a juízos e valorações deste carácter, ora implícitos, ora explícitos.
Beau e Joli
Será possível, entretanto, uma estética livre destes fundamentos? Quais seriam suas consequências? Para responder a estas questões é necessário estabelecer a distinção que denominaremos de beau e joli. A respeito deste tema esclarece o Prof. Plinio Correa de Oliveira:
“Entra-se, por exemplo, numa sala decorada de uma maneira tal que ela produz à primeira vista uma impressão agradável, assim bem arranjadinha, bem ajeitadinha, acolhedora, afável, e que lisonjeia os sentidos. Esta sala pode ser chamada joli, mas ela não é belle. Belle se diz de uma sala em que, não só há uma impressão agradável causada sobre os sentidos, mas na qual também, feita a análise pela inteligência, se nota a conformidade das disposições ordenadas da sala com os princípios da estética.”[3]
Ou seja, a estética tem exigências, vinculadas ora remota, ora intimamente, com os primeiros princípios. Princípios que por sua vez são relacionados com a metafísica, e que constituem um arcabouço sólido para a valorização da experiência estética. Assim, aquela sala acima descrita seria realmente belle caso proporcionasse uma relação de ordem e de coerência conforme à ordem universal, à nossa inteligência e à nossa natureza. Beau seria assim uma “beleza profunda de substrato metafísico”[4], enquanto que o joli é “uma beleza que apenas agrada a epiderme, que agrada a vista.”[5]
Esta explicitação ajudar-nos-á a compreender o que se poderia chamar a “pré-história” de um dilema muito em voga em nosso século: o binómio funcionalidade-estética. Estes antecedentes começaram a sentir-se no séc. XIX, época de grande propagação do joli em todos os campos. Esta espécie de saturação preparou uma posição psicológica na opinião pública pela qual, a contemplação ametafísica da arte, tomada no seu sentido mais lato, tornou-se uma rotina. Porém, aquilo que se baseia unicamente na rotina produz fadiga e saturação e, deste modo, o desejo de algo novo, um anseio de algo diferente e contraditório ao antigo. Estava estabelecido nas almas uma tendência que só encontraria descanso na funcionalidade. Chegamos ao séc. XX.
Funcionalidade e estética
O desejo de funcionalidade do séc. XX é saciado pela Arte Moderna, corrente especialmente exaltadora da funcionalidade. Contudo duas perguntas são necessárias aqui: não será possível um matrimónio feliz entre a estética e a funcionalidade? Serão estes conceitos antagónicos ou harmónicos?
O matrimônio harmónico entre esses dois conceitos é possível. A Arte Moderna, corrente que melhor exprime a funcionalidade sem estética, propugna “uma arte baseada na negação da validade estética sob o pretexto de funcionalidade”[6]. Entretanto, um estilo funcional que oprime a estética, pode ser comparado a um casamento despótico em que, o funcional faz o papel do marido absolutista, e a estética o da esposa comprimida e escravizada. Negar à estética um lugar próprio e distinto da funcionalidade é erróneo, do mesmo modo que um estilo inteiramente despido de funcionalidade é artificial.
O correto é, portanto, estabelecer-se um verdadeiro matrimônio entre funcionalidade e estética. Tomemos como exemplo uma mesa. O facto de seus pés terem uma forma sinuosa, correspondem a uma conveniência estética, que se harmoniza com a necessidade funcional de que ela tenha algo que a mantenha acima da terra. Portanto além do carácter funcional de cada objecto, ou obra de arte, há uma necessidade real de realizar “umas certas aspirações, umas certas inclinações profundas da alma, umas certas verdades que o homem conhece e que exprime e transmite simbolicamente através da estética. Nesse sentido a estética tem uma função que é divorciada do funcional. É uma missão que é distinta dele”[7]
Por Sérgio Nunes
[1] Cf. De Veritate q. 11, a. 1.
[2] CORREA DE OLIVEIRA, Plinio, 3-6-1974. 2-3-1995 in A Inocência Primeva e a Contemplação Sacral do Universo.
[3] CORREA DE OLIVEIRA, Plinio. Beau e Joli. São Paulo, 18 ago. 1972. Conferência. (Arquivo ITTA-IFAT).
[4] Op. Cit.
[5] Op. Cit.
[6] Op. Cit.
[7] Op. Cit.