O canto que brota da vida interior

Redação (12/03/2010, Virgo Flos Carmeli) Dentre os compositores clássicos, poucos alcançaram a fama e o reconhecimento obtidos por Wolfgang Amadeus Mozart (1756-1791). Dotado de extraordinários dons musicais, com apenas cinco anos de idade começou a compor os primeiros minuetos. Sua genialidade despertou a admiração de grandes mestres, como Schubert que, após ouvir uma dessas peças musicais, exclamou: “Parece que os anjos participam com o seu canto!”.1

A obra de Mozart é muito extensa. Às dezenas de sinfonias, concertos, serenatas e óperas, é preciso acrescentar dezoito missas, quatro ladainhas, três vésperas, além de inúmeras cantatas, oratórios e outras composições sacras.

No entanto, avaliando essa vasta criação, de índole tanto religiosa quanto profana, Mozart afirmou: “Daria toda a minha obra para ter escrito o ‘Prefácio’ da Missa Gregoriana”.2

Que perfeição, esplendor e mistério há no canto gregoriano para que o afamado compositor de Salzburgo fizesse tão surpreendente afirmação?

História que se confunde com a da Igreja

Durante séculos, foi universalmente aceito que os hinos da antiga sinagoga, mais propriamente os salmos, contribuíram para a formação das raízes do canto da Igreja, visto que os Apóstolos e muitos de seus discípulos eram judeus. No entanto, em meados da década de 1990, alguns estudiosos passaram a contestar essa tese, alegando que os primeiros cristãos não utilizavam os textos dos salmos, pois estes deixaram de ser cantados nas sinagogas depois da destruição do Templo, no ano 70.3

Não é possível negar, entretanto, que os primeiros ritos cristãos incorporaram elementos do cerimonial judaico. As horas canônicas têm suas raízes nas orações hebraicas, as palavras “amém” e “aleluia” vêm do hebreu, e as três invocações do sanctus derivam do triplo kadosh, na recitação do Kedusha.4 É, pelo menos, muito provável que tenha havido também uma influência judaica na música da comunidade proto-cristã.

De resto, pouco se conhece da história do canto sacro até fins do século VI, quando o Papa São Gregório Magno decidiu unificar toda a tradição litúrgica florescida ao longo dos séculos anteriores. Sob sua direção, um corpo de músicos e estudiosos selecionou as melodias mais convenientes para as cerimônias litúrgicas, preencheu lacunas e aperfeiçoou os cantos já existentes, “provendo, com oportunas leis e normas, a assegurar a pureza e a integridade do canto sacro”.5 O gênero musical então nascente ficou conhecido como Gregoriano, em consideração à iniciativa daquele Pontífice.

A “Schola Cantorum”

São Gregório fundou também a Schola Cantorum, na qual se ensinava e aprimorava o canto litúrgico. Muitos mosteiros e abadias mandaram religiosos para Roma, com a finalidade de aí adquirir a necessária formação musical para depois ensinar a seus irmãos de vocação.

Os meninos tinham igualmente seu lugar na Schola Cantorum. Há quem diga que o próprio São Gregório chegou a dar-lhes algumas aulas. Eles cantavam junto com os monges, alternando-se a cada versículo nos salmos e responsórios, bem como nas estrofes dos hinos.

A importância desta instituição foi reconhecida pelos sucessores de São Gregório, os quais continuaram a incentivá-la. O fato de haver esse centro de referência resultou numa unidade nos métodos de ensino do gregoriano em toda a Europa. E isso foi fundamental para o seu progresso e aperfeiçoamento.

Íntima união entre música e letra

O canto gregoriano não é um gênero musical no sentido estrito do termo. Ele nasceu como companheiro inseparável da oração, com a finalidade de louvar a Deus e propagar as verdades da Fé. O texto dos seus hinos, salmos e antífonas é muitas vezes tirado da Sagrada Escritura. Daí que tenha sido freqüentemente chamado de “Bíblia cantada”.

A íntima união que deve haver entre música e letra já havia sido vivamente sublinhada pelo grande Santo Agostinho, mais de um século antes do reinado de São Gregório. Ao comentar os cânticos “executados com voz límpida e com modulações apropriadas”, o Bispo de Hipona assim descreve seus próprios sentimentos: “As nossas almas se elevam na chama da piedade, com um ardor e uma devoção maiores, por efeito daquelas santas palavras, quando elas são acompanhadas pelo canto. E todos os diversos sentimentos do nosso espírito acham no canto uma modulação própria que os desperta, por força de não sei que relação oculta e íntima”.6

Já no século XX, o Papa São Pio X completa e precisa esta idéia ao ensinar: “A música sacra, como parte integrante da Liturgia solene, participa do seu fim geral, que é a glória de Deus e a santificação dos fiéis. A música concorre para aumentar o decoro e esplendor das sagradas cerimônias; e, assim como o seu ofício principal é revestir de adequadas melodias o texto litúrgico proposto à consideração dos fiéis, assim o seu fim próprio é acrescentar mais eficácia ao mesmo texto, para que por tal meio se excitem mais facilmente os fiéis à piedade e se preparem melhor para receber os frutos da graça, próprios da celebração dos sagrados mistérios”.7

Décadas depois, Pio XII voltará a lembrar que “a dignidade e a excelsa finalidade da música sacra” consiste “em, por meio das suas belíssimas harmonias e da sua magnificência, trazer decoro e ornamento às vozes, quer do sacerdote ofertante, quer do povo cristão que louva o sumo Deus; em elevar os corações dos fiéis a Deus por uma intrínseca virtude sua; em tornar mais vivas e fervorosas as orações litúrgicas da comunidade cristã, para que Deus uno e trino possa ser por todos louvado e invocado, com mais intensidade e eficácia”.8

E, ressaltando o uso da música a serviço das Celebrações Eucarísticas, o Papa Pacelli acrescenta: “Não pode ela, pois, realizar nada de mais alto e de mais sublime do que o ofício de acompanhar, com a suavidade dos sons a voz do sacerdote que oferece a vítima divina, do que responder alegremente às suas perguntas juntamente com o povo que assiste ao sacrifício, e do que tornar mais esplêndido com a sua arte todo o desenvolvimento do rito sagrado”.9

O uso do latim

O canto gregoriano está intimamente ligado à língua da antiga Roma, e não apenas pela sua origem histórica. Muitos estudiosos defendem que suas melodias provêm da extensão do acento das palavras latinas. Daí a grande dificuldade em vertê-lo para outros idiomas, pois nem sempre se consegue fazer coincidir os acentos melódicos com os idiomáticos.

François-René de Chateaubriand, famoso escritor francês do século XIX, mostra, em uma de suas obras mais conhecidas, a riqueza expressiva do latim e sua perfeita adaptação ao culto divino: “Cremos que uma língua anciã e misteriosa, uma língua que os séculos não alteram, assaz convinha ao culto do Ser eterno, incompreensível, imutável. E, pois que o pungir de nossas dores nos força a erguer ao Rei dos reis suplicante voz, não é natural que se Lhe fale no mais gentil idioma da Terra, naquele mesmo de que usavam as nações prostradas quando elevavam aos Césares as suas deprecações? Além disso — e notável coisa é! — as orações em latim parecem duplicar o sentimento religioso das multidões”.10

Daí que, entre outras razões, o Concílio Vaticano II recomende, na Constituição Sacrosanctum Concilium, sobre a Sagrada Liturgia: “Zele-se, todavia, para que os fiéis cristãos possam ao mesmo tempo recitar ou cantar também em língua latina as partes do Ordinário da Missa que lhes dizem respeito”.11

Grandeza e majestade do órgão

O gregoriano é modulado em uníssono, ainda que sejam muitos os cantores. Além disso, quando as primeiras composições surgiram, no austero ambiente dos mosteiros, só vozes humanas as entoavam, sem a utilização de acompanhamentos instrumentais.

O Papa Pio XI, em sua Constituição Apostólica Divini Cultus, afirma: “Com efeito, nenhum instrumento, por mais exímio e perfeito que seja, pode superar a voz humana ao exprimir os sentimentos da alma, e isto ainda menos quando a alma se utiliza da voz para elevar preces e louvores ao Deus Onipotente”.12

No entanto, passados os anos, para assegurar a afinação e manter firme a base da música, dando-lhe maior esplendor, foi permitido o uso do órgão na execução das melodias gregorianas, desde que ele não encobrisse a voz dos cantores. Diz o mesmo Pio XI: “Por sua admirável grandeza e majestade, foi julgado digno de se unir aos ritos litúrgicos, quer acompanhando o canto, quer, estando calado o coro nos momentos prescritos, emitindo suavíssimas harmonias”.13

Na mesma linha de seu antecessor, observa o Papa Pio XII: “Entre os instrumentos, aos quais é aberta a porta do templo, vem, de bom direito, em primeiro lugar o órgão, por ser particularmente adequado aos cânticos sacros e aos sagrados ritos, por conferir às cerimônias da Igreja notável esplendor e singular magnificência, por comover a alma dos fiéis com a gravidade e doçura do seu som, por encher a mente de gozo quase celeste, e por elevar fortemente a Deus e às coisas celestes”.14

E Sua Santidade Bento XVI, após ressaltar que a finalidade desse maravilhoso instrumento é “a glorificação de Deus e a edificação da fé”, acrescenta:“Desde sempre e com boa razão, o órgão é classificado como o rei dos instrumentos musicais, porque retoma todos os sons da criação e — como há pouco foi dito — dá ressonância à plenitude dos sentimentos humanos, da alegria à tristeza, do louvor à lamentação. Além disso, como toda música de qualidade, ao transcender a esfera simplesmente humana, remete para o divino. A grande variedade dos timbres do órgão, do piano até ao fortíssimo arrebatador, faz dele um instrumento superior a todos os outros. Ele é capaz de dar ressonância a todos os aspectos da existência humana. De qualquer modo, as múltiplas possibilidades do órgão recordam-nos a imensidade e a magnificência de Deus”.15

O Pontifício Instituto de Música Sacra

A arte vocal foi se aprimorando ao longo dos séculos. Do cantochão passou-se à polifonia, da polifonia à música de câmara e desta às grandes composições sinfônicas. Cordas, madeiras e metais conjugavam-se harmoniosamente com as vozes, em partituras de uma grandiosidade e valor artístico inalcançáveis pelo canto simples e solene da primitiva Igreja.

No início do século XX, o gregoriano parecia relegado aos mosteiros e certas cerimônias litúrgicas, para as quais se tornara insubstituível. A música sacra, em seu conjunto, corria o risco de ficar subjugada à arte, perdendo sua finalidade originária. Isto levou o Papa São Pio X a realizar o que, mais tarde, Pio XII denominou “uma restauração e reforma orgânica da música sacra, tornando a inculcar os princípios e as normas transmitidos pela antigüidade, e oportunamente reordenando-os segundo as exigências dos tempos modernos”.16

Um dos frutos de seu zelo foi a ereção em Roma, em 1911, da Pontifícia Escola Superior de Música Sacra, que em seguida se tornou o Pontifício Instituto de Música Sacra.17

O Motu Proprio “Tra le sollecitudini”

A essência da reforma de São Pio X está contida no Motu Proprio Tra le sollecitudini, qualificado pelo Papa João Paulo II de “verdadeiro código jurídico da música sagrada”.18

Nesse documento, do início do século XX, o Papa define as principais qualidades que devem existir em uma composição musical para que ela possa ser considerada “sacra”: “Deve possuir, em grau eminente, as qualidades próprias da Liturgia, nomeadamente a santidade e a delicadeza das formas, donde resulta espontaneamente outra característica: a universalidade”.19

Essas qualidades, conclui São Pio X, são encontradas no gregoriano em grau altíssimo e por esse motivo é ele considerado o canto próprio da Igreja Católica. De tal modo que o Papa chega a estabelecer este princípio: “Uma composição religiosa será tanto mais sacra e litúrgica, quanto mais se aproximar, no andamento, inspiração e sabor, da melodia gregoriana, e será tanto menos digna do templo quanto mais se afastar daquele modelo supremo”.20

Um refrigério para o materialismo de nosso século

Há uma misteriosa relação entre o canto e a oração. Sem dúvida, mais ainda do que a perfeição técnica, o que torna especialmente belo o canto sacro é ver refletida nele, com esse arcano poder que têm as artes de materializar o espírito, a aspiração das almas à santidade. Não seria exagerado dizer que o gregoriano autêntico nasce mais do coração que dos lábios.

Percebeu isso de modo admirável Pio XI, ao afirmar que “tudo quanto brota da vida interior, da mesma vida de que vive a Igreja, transcende até as coisas mais perfeitas deste mundo”.21

Eis o motivo do canto gregoriano, apesar de sua antiga origem, conservar tanta vitalidade. Eis também a razão de ser procurado, ouvido e admirado na sua singeleza por um incalculável número de pessoas, muitas das quais não são cristãs praticantes. A verdadeira música sacra traz em si o perfume do sobrenatural, ajudando a saciar a sede constante do sublime e do eterno, que aflige nosso século, tão deformado pela ciência e pela técnica.

Emílio Portugal Coutinho (2º Ano de Teologia)

ARAUTOS DO EVANGELHO, N. 80, Agosto de 2008.


1 Apud: Papa Bento XVI. Saudação no final do concerto comemorativo do milênio da Arquidiocese de Bamberg. 4/9/2007.

2 DANIEL-ROPS, Henri. A igreja das Catedrais e das Cruzadas. V. III. São Paulo: Editora Quadrante, 1993, p. 429.

3 Cf. HILEY, David. Western Plainchant. Oxford: Clarendon Press, 1993, pp. 484-485.

4 Cf. APEL, Willi. Gregorian Chant. London: Burns & Oates, 1958, p. 34.

5 Apud: PIO XII. Carta Encíclica Musicæ Sacræ Disciplina, n. 4.

6 Apud: PIO XII, Op. cit, n. 14.

7 PIO X. Motu Proprio Tra le sollecitudini, n. 1.

8 PIO XII, Op. cit, n. 14.

9 PIO XII, Op. cit, n. 15.

10 CHATEAUBRIAND. François-René de. Génie du christianisme, Quatrième Partie – Culte, l. 1, c. 3.

11 Sacrosanctum Concilium, n. 54.

12 PIO XI. Constituição Apostólica Divini Cultus, n. VII.

13 PIO XI. Op. cit., n. VIII.

14 PIO XII. Op. cit., n. 28.

15 Discurso no final da Cerimônia da Bênção do novo órgão da “Alte Kapelle”. Regensburg, 13/9/2006.

16 PIO XII. Op. cit. n. 7.

17 A importância deste instituto para a Igreja universal, cem anos depois de sua fundação, foi ressaltada por Bento XVI ao lembrar que “numerosos estudantes, aqui reunidos de todas as partes do mundo para se formarem nas disciplinas da música sacra, se tornam por sua vez formadores nas respectivas Igrejas locais” (Discurso aos professores e estudantes, durante visita ao Pontifício Instituto de Música Sacra, 13/10/2007).

18 Quirógrafo do Sumo Pontífice João Paulo II no centenário do Motu Proprio Tra le sollecitudini, sobre a música sacra, 22/11/2003.

19 PIO X, Op. cit, n. 2.

20 PIO X, Op. cit, n. 3.

21 PIO XI, Op. cit., n. 19.