Introdução
Redação (05/03/2014, Virgo Flos Carmeli) “Tempo houve em que a filosofia do Evangelho governava os Estados. Nessa época, a influência da sabedoria cristã e a sua virtude divina penetravam as leis, as instituições, os costumes dos povos, todas as categorias e todas as relações da sociedade civil. (…) Organizada assim, a sociedade civil deu frutos superiores a toda expectativa, cuja memória subsiste e subsistirá, consignada como está em inúmeros documentos que artifício algum dos adversários poderá corromper ou obscurecer ”.
De que época mítica no fala o Santo Padre Leão XIII?
Sabemos todos que não é outra época senão a Idade Média que nos descreve o Sumo Pontífice. Com efeito, quantos não se maravilham até hoje, passando pelas ruas das históricas cidades da Europa, se deparando ora com uma catedral, ora com um palácio, ora com algum outro monumento que evoca esta época de antanho, onde “a influência da sabedoria cristã e a sua virtude divina penetravam as leis, as instituições, os costumes dos povos, todas as categorias e todas as relações da sociedade civil”.
Em geral, numa civilização, as artes, arquiteturais, musicais, ou outras, são as últimas a serem desenvolvidas, as últimas a se aperfeiçoarem a ponto de refletirem a “alma” desta civilização. Com efeito, quando temos maravilhas exteriores é por que o interior é muitíssimo mais rico do que o que se pode perceber materialmente.
Leão XIII faz referência à filosofia do Evangelho que governava os Estados. Ora qual é a filosofia do Evangelho senão o que o próprio Nosso Senhor veio nos instruir: “Dou-vos um novo mandamento: Amai-vos uns aos outros. Como eu vos tenho amado, assim também vós deveis amar-vos uns aos outros. Nisto todos conhecerão que sois meus discípulos, se vos amardes uns aos outros” (Jo 13, 34-35). No fundo é isto o que Cristo veio ensinar aos homens, que eles se amassem como Ele mesmo nos ama. Nesta época dominada pelos preceitos do Evangelho, que nos fala o Santo Padre, já bem cedo estas idéias eram incutidas nas crianças, incentivando-as, sobretudo, na prática do quarto mandamento da Lei de Deus. Ensinava-se a amar a Deus, e aos outros como Deus nos ama.
É precisamente isto que queremos mostrar neste trabalho: como na Idade Média – mais especificamente na Cristandade Medieval Européia – a sociedade, imbuída das doutrinas cristãs, procurava seriamente praticar todos os mandamentos. Contudo, foi pelo quarto mandamento que os medievais conseguiram constituir sua civilização, ensinando o amor e a admiração às autoridades e à hierarquia, tendo sempre Deus como fim último.
Dois reis, dois opostos, e um exemplo
Quando se fala de Idade Média, todos os historiadores são unanimes em admitir que seu apogeu se deu no século XIII, que uma de suas mais altas expressões verificou-se com a Filha Primogênita da Igreja, a França, e ainda que, personalizando toda esta época de auge e esplendor, está o grande monarca e santo: São Luis IX, Rei de França, o homem medieval por excelência.
Muito claro tinha este monarca a noção da perfeita prática do quarto mandamento. Este valente guerreiro da fé sabia perfeitamente bem prestar a devida e entusiástica reverência a Deus, como princípio de todas as coisas, cultuando-O de modo especial, pela virtude da religião. Porém, sendo Soberano e levando até o fim seus deveres para com a pátria e os demais, soube ele prestar-lhes o culto devido pela virtude da piedade. Sendo ainda pai de toda uma nação, soube ele fazer-se respeitar e ser cultuado, pelo que ele representava de Deus.
Na hora de sua morte, com a mesma exímia perfeição com que costumava fazer todas as coisas, instruiu ele a seu filho num testamento imbuído da prática ao quarto mandamento, ou seja, de amor a Deus, sem, contudo, se esquecer dos conselhos práticos que um pai – mormente um rei – deve dar ao seu filho e sucessor:
“Filho dileto, começo por querer ensinar-te a amar ao Senhor, teu Deus, com todo o teu coração, com todas as forças; pois sem isto não há salvação.
Filho, deves evitar tudo quanto sabes desagradar a Deus, quer dizer, todo pecado mortal, de tal forma que prefiras ser atormentado por toda sorte de martírios a cometer um pecado mortal.
Ademais se o Senhor permitir que te advenha alguma tribulação, deves suportá-la com serenidade e ação de graças. Considera suceder tal coisa em teu proveito e que talvez a tenhas merecido. Além disso, se o Senhor te conceder a prosperidade, tens de agradecer-lhe humildemente, tomando cuidado para que nesta circunstância não te tornes pior, por vanglória ou outro modo qualquer, porque não deves ir contra Deus ou ofendê-lo valendo-te de teus dons.
Ouve com boa disposição e piedade o ofício da Igreja e enquanto estiveres no templo, cuida de não vagueares os olhos ao redor, de não falar sem necessidade; mas roga ao Senhor devotamente quer pelos lábios, quer pela meditação de coração.
[…] Em relação a teus súditos, sê justo até ao extremo de justiça, sem te desviares nem para a direita nem para a esquerda. […] Procura com empenho que todos os teus súditos sejam protegidos pela justiça e pela paz, principalmente as pessoas eclesiásticas e religiosas.
Sê dedicado e obediente a nossa mãe, a Igreja Romana, ao Sumo Pontífice, como pai espiritual. Esforça-te por remover de teu país todo pecado, sobretudo o de blasfêmia e de heresia.
Ó filho muito amado, dou-te enfim toda a bênção que um pai pode dar ao filho; que toda Trindade e todos santos te guardem do mal. Que o Senhor te conceda a graça de fazer Sua vontade de forma a ser servido e honrado por ti. E assim, depois desta vida, iremos juntos vê-lo, amá-lo e louvá-lo sem fim. Amém”.
Não seria possível não perceber neste escrito os inumeráveis ensinamentos de prática ao quarto mandamento que dá São Luis Rei a seu filho, Philippe III, o Intrépido. Com efeito, o Santo Rei, começa por mostrar a seu filho o amor e temor que se deve ter a Deus: princípio mais profundo da prática ao quarto mandamento, pois amamos e honramos nossos superiores por amor a Deus, reconhecendo neles a imagem do Criador. Em seguida ensina-o como deve amar e servir a Santa Igreja, e todo o respeito que se deve ter às autoridades eclesiásticas, exorta-o ainda para que seja um verdadeiro pai para sua nação. Ao terminar, ele profetiza que se seu filho cumprir tais conselhos, eles hão de se rever no Céu – o que não é de se estranhar…
Infelizmente acedeu ao trono de França outro monarca que já não mais ecoou os ensinamentos e os preceitos de seu avô, o pérfido Rei Felipe, o Belo. Notamos no comportamento deste soberano uma brusca queda e um grande declínio na Idade Média. Efetivamente, os feitos deste neto do santo rei são famosos, todos sabem a ganância e o orgulho que nele imperavam. Tanto quanto seu avô fora santo, ele fora perverso. Em suma tudo o que seu predecessor tivera de admiração e enlevo ao Papado, ele teve de revolta, chegado até a esbofetear o Papa Bonifacio VIII na cidade de Agnani.
Contudo, tão grande era a noção do sacral, na brilhante civilização medieval, que mesmo os mais pérfidos, muitas vezes, deixavam-se tocar. Foi o que se deu com este miserável Rei, que na hora da morte se arrependeu, e, vendo que ele mesmo não tinha dado bons exemplos a seu filho e sucessor, deixou por sua vez este testamento:
“Meu filho, eu vos falo diante de todos os que vos amam, e cujo dever é de vos servir. Fazei-vos amar por todos a quem vós comandais, sem isto, vós tereis tanto minha maldição quanto a de Deus. Primeiramente amai a Deus, temei-O; respeitai a Igreja, sejais seu protetor, seu defensor, sustentai vossa fé, sejais um campeão invencível do Céu. Não vos fatigais de fazer o bem. Lembrai-vos que vós series rei de França e honrai em vós mesmo a dignidade real.”
Como vemos, este que outrora perseguira a Santa Igreja, aconselha a seu sucessor a respeitá-la. Notemos que o primeiro conselho que ele dá em seu testamento é de amar e temer a Deus, assim como o fizera anos antes seu avô. Mais inda, como que para reparar os erros de um mal filho da Igreja – que ele foi – ele adverte seu filho para ser um campeão invencível da fé, exorta-o a proteger e respeitar esta Santa Instituição.
Tomamos propositadamente duas figuras opostas, visto que o primeiro fora santo, porém do segundo não se poderia nem de longe afirmar que tenha sido ao menos virtuoso… Estas figuras díspares nos ajudam a compreender que, na Idade Média tal, era a influência e a penetração da Igreja, que tanto um Rei Santo, quanto um Rei ruim, sabia dar mostras de uma profunda noção a respeito do quarto mandamento. Sim, pois quando, em seus respectivos testamentos, aconselham amor a Deus, fidelidade à Santa Igreja, respeito e bem-querença para com seus súditos, no fundo eles estão incentivando à prática deste mandamento que, bem observado – como fora na Idade Média – construiu toda a maravilha da Civilização Cristã, na Europa. Deste modo melhor podemos compreender a que afirmação que inicia esta redação: “Tempo houve em que a filosofia do Evangelho governava os Estados. Nessa época, a influência da sabedoria cristã e a sua virtude divina penetravam as leis, as instituições, os costumes dos povos, todas as categorias e todas as relações da sociedade civil.”
Não nos atreveremos a mudar qualquer vírgula da belíssima frase de Sua Santidade Leão XIII, dado a excelência de seu autor, contudo, bem se poderia afirmar sobre a Idade Média: Tempo houve em que o quarto mandamento era observado eximiamente pelos que governavam os Estados. Nessa época, a influência da sabedoria cristã e a sua virtude divina penetravam as leis, as instituições, os costumes dos povos, todas as categorias e todas as relações da sociedade civil…
Pe. Michel Six, E.P.