O que é a Tradição?

Redação (14/07/2011, Virgo Flos Carmeli) Só a Bíblia basta? O deslizar de certas plumas sobre pergaminhos, formando pensamentos cuja inspiração vinha do alto, bastaria para narrar, explicitar e desenvolver todos os ensinamentos deixados pelo Homem-Deus?

Um trecho do próprio pergaminho bíblico responde nossa pergunta: “Jesus fez ainda muitas outras coisas. Se fossem escritas uma por uma, penso que nem o mundo inteiro poderia conter os livros que se deveriam escrever” (Jo 21,25). Essa declaração de São João nos sugere ainda outra pergunta: acaso Deus permitiria que todos os fatos e doutrinas de Nosso Senhor Jesus Cristo, que não foram relatados, ficassem completamente olvidados pela história somente porque a quantidade de livros seria demasiadamente grande? Ou Ele tinha em consideração que: “a sagrada Escritura está escrita mais no coração da Igreja do que nos instrumentos materiais”[1]?

À primeira vista pode parecer que os Sagrados Livros seriam, de si, suficientes para nos dar o conhecimento claro e perfeito de todas as verdades reveladas. Entretanto, analisando o procedimento do Espírito Santo para com os Apóstolos, vemos que a linguagem falada também se faz necessária. Notamos isso, por exemplo, quando São João salienta a função da palavra oral alegando amavelmente que “apesar de ter mais coisas que vos escrever, não o quis fazer com papel e tinta, mas espero estar entre vós e conversar de viva voz, para que a vossa alegria seja perfeita” (2Jo 1, 12). Ele tinha bem presente que o Espírito é quem vivifica (cf. 2Cor 3,6).

Ademais, antes de ser colocada por escrito, a Palavra de Deus foi pregada, e o próprio São Paulo exorta os fiéis para que os ensinamentos que dele aprenderam, por palavras e por escrito, sejam firmemente conservados (2Ts 2,15). O mesmo Apóstolo afirmou: “o que ouvistes de mim em presença de muitas testemunhas, confia-o a homens fiéis, que sejam capazes de ensinar ainda a outros” (2Tm 2,2). Ele chancela assim, o valor e, por assim dizer, a missão da Sagrada Tradição.

Além do mais, o que fez o Divino Mestre durante sua vida pública senão pregar, exortar e aconselhar? A não ser com o dedo na terra, quando os judeus procuravam condenar ao apedrejamento uma mulher adúltera, na Bíblia não consta que Ele tenha escrito outra coisa (cf. Jo 8, 6).

Por meio da própria Tradição a Igreja pôde concluir quais são exatamente os Livros da Bíblia, além de fazer com que essa seja mais bem compreendida[2]. Contudo, é mister analisar que “a Tradição da qual aqui falamos é a que vem dos apóstolos e transmite o que estes receberam do ensinamento e do exemplo de Jesus e o que receberam por meio do Espírito Santo. Com efeito, a primeira geração de cristãos ainda não dispunha de um Novo Testamento escrito, e o próprio Novo Testamento atesta o processo da Tradição viva”[3].
Que conclusão tiramos de tudo isso? Houve corações que portaram as verdades reveladas por Nosso Senhor, e sem escreverem na Bíblia, entregaram esses ensinamentos às gerações posteriores[4]. É este o significado da palavra Tradição (do latim traditio), que designa o ato de entregar alguma coisa. E isso, “foi fielmente executado tanto pelos Apóstolos, quer na pregação oral, por exemplos e instituições, em que transmitiram aquelas coisas que receberam das palavras, da convivência e das obras de Cristo ou que aprenderam das sugestões do Espírito Santo, como também por aqueles Apóstolos e varões apostólicos que, sob inspiração do mesmo Espírito Santo, puseram por escrito a mensagem da salvação”[5]. Assim acrescenta o Catecismo: “esta transmissão viva, realizada no Espírito Santo, é chamada de Tradição enquanto distinta da Sagrada Escritura, embora intimamente ligada a ela”[6]. Ocupa um lugar preponderante na Tradição todas as obras literárias dos Santos Padres.

Estão, pois, extremamente errados aqueles que afirmam que só a Bíblia comunica as verdades reveladas. Na verdade, ambas, a tradição escrita e a oral se harmonizam e se completam. Aos Apóstolos Nosso Senhor disse: “ide por todo o mundo e pregai o Evangelho a toda criatura”(Mc 16,15), e não: “ide por todo o mundo e escrevei a toda criatura”. Além do mais, declarou que: “Quem vos ouve, a mim ouve; e quem vos rejeita, a mim rejeita; e quem me rejeita, rejeita aquele que me enviou” (Lc 10,16).

Por outro lado, esta Tradição foi transcrita desde cedo em pergaminhos, como nos lembra essa passagem do Evangelho de São Lucas: “muitos empreenderam compor uma história dos acontecimentos que se realizaram entre nós, como no-los transmitiram aqueles que foram desde o princípio testemunhas oculares e que se tornaram ministros da palavra. Também a mim me pareceu bem, depois de haver diligentemente investigado tudo desde o princípio, escrevê-los para ti segundo a ordem, excelentíssimo Teófilo, para que conheças a solidez daqueles ensinamentos que tens recebido” (Lc 1, 1-4).

Não poderíamos nos esquecer, que apesar de tudo já estar revelado, nem todas as verdades chegaram a seu último afloramento. Por isso, esta Tradição, proveniente dos Apóstolos, vai evoluindo na Igreja sob a assistência do Espírito Santo. E, cresce assim, a compreensão das palavras transmitidas, seja pela contemplação e estudo dos que crêem, seja pela íntima compreensão que desfrutam das coisas espirituais, seja pela pregação daqueles que receberam o carisma autêntico da verdade através da sucessão do episcopado[7].

Por essa razão, a Igreja, à qual Cristo confiou o depósito da Fé, não extrai sua certeza somente da Sagrada Escritura, pois, tanto ela como a Sagrada Tradição, são duas “águas” que derivam da mesma fonte, que é a Bondade de Deus, e se direcionam para o mesmo fim[8]. Assim, nos ensina o Magistério da Igreja que: “ambas – Escritura e Tradição – devem ser recebidas e veneradas com igual sentimento de piedade e reverência”[9].

O que comentar daqueles que não aceitam tal Tradição? Não estariam eles contestando, recusando e menosprezando também os próprios livros Sagrados, uma vez que eles mesmos dão o testemunho de que devemos nos orientar para as fontes orais da Palavra de Deus?  “Cuidado!”, dizia São Jerônimo: “ignorar as Escrituras é ignorar Cristo”[10]. Alguns, que já são órfãos porque não aceitam como Mãe a Santíssima Virgem, querem ficar ainda mais caolhos recusando a Tradição vinte vezes secular?                 Enfim, nada mais é preciso dizer, pois não só as próprias plumas das quais falávamos no início, mas também o Magistério nos indica claramente que a Sagrada Tradição e a Sagrada Escritura são como que um só espelho, no qual a Igreja peregrina na terra contempla a Deus[11]. Existem, pois, aqueles que não querem contemplá-Lo integramente. Para não cairmos no mesmo erro, sigamos o conselho daquele que tanto demonstrou a necessidade da Tradição: “toma por modelo os ensinamentos salutares que recebeste de mim” (2Tm 1, 13), e, sejamos uma carta de Cristo, “escrita não com tinta, mas com o Espírito de Deus vivo” (2Cor 3,2).

Lucas Alves Gramiscelli


[1] Esta frase trata de um adágio dos Padres da Igreja: “Sacra Scriptura principalius est in corde Ecclesiae quam in materialibus instrumentis scripta”. Cf. CATECISMO DA IGREJA CATÓLICA, n. 113. Santo Hilário de Poitier, Liber ad Constantium imperatorem 9; CSEL 65, 204 (PL 10, 570). São Jerônimo, Commentarius in Epistulam Galatas 1, 1, 11-12; PL 26, 347.

[2] Cf.  Concílio Vaticano II, Constituição dogmática Dei Verbum, n. 8. In AAS 58 (1966) p. 821.

[3] CATECISMO DA IGREJA CATÓLICA, n. 83.

[4] Uma corrente teológica acredita que a Bíblia contém todas as verdades reveladas e outra defende que há verdades não expressas pela Bíblia, mas que foram transmitidas pela Tradição. A questão ainda não foi definida pelo magistério da Igreja.

[5] Concílio Vaticano II, Constituição dogmática Dei Verbum, n. 7. In AAS 58 (1966) p. 820.

[6] CATECISMO DA IGREJA CATÓLICA, n. 78.

[7] Concílio Vaticano II, Constituição dogmática Dei Verbum, n. 8. In AAS 58 (1966) p. 821.

[8] Cf. Concílio Vaticano II, Constituição dogmática Dei Verbum, n. 9. In AAS 58 (1966). p. 821.

[9] Idem.

[10] São Jerônimo, do prólogo ao Comentário sobre o Profeta Isaías, 1.2. CCL 73, 1.

[11] Concílio Vaticano II, Constituição dogmática Dei Verbum, n. 7. In AAS 58 (1966). p. 820.