Redação (09/09/2013, Virgo Flos Carmeli) Discorrer sobre anjos pareceria extravagante e pueril até alguns anos atrás. Não obstante, o tema está de volta com toda a força, em plena era do materialismo.
Junto com o renovado interesse pelas criaturas angélicas, muitas fantasias e erros se acrescentam àquilo que a Igreja ensina a respeito delas. Não é nossa intenção analisá-los aqui. Propomo-nos apenas investigar um tema que move em extremo nossa curiosidade, na tentativa de rasgar um pouco o véu que nos oculta o mundo dos puros espíritos: como eles se comunicam?
Seres imateriais, mas compostos
Que os anjos são seres imateriais é algo hoje aceito pacificamente, embora não seja fácil de compreender. Temos tendência a “antropomorfizar” sua vida, transpondo para o plano celeste as circunstâncias de nossa existência terrena. Entretanto, nada há de mais distante da realidade.
Por isso mesmo, nos primeiros séculos da Igreja, o debate sobre a existência de um “corpo angélico” causou controvérsias entre os entendidos, e mesmo entre santos. Uma corrente teológica muito numerosa — na qual se inclui São Boaventura — defendia a tese de que os entes angélicos têm, em sua composição, alguma “matéria espiritual”, um corpo etéreo, extremamente sutil. Pois, argumentavam os defensores dessa corrente, como explicar sua individuação, contingência, o fato de serem criaturas compostas e estarem delimitados?[1] Mais ainda: se os anjos são puros espíritos, não seriam totalmente simples?[2] Como distingui-los de Deus?
A questão veio a ser esclarecida por um dos maiores luminares do pensamento: São Tomás de Aquino. Com singeleza e objetividade, ele clarificou ideias abstrusas e precisou conceitos ambíguos — às vezes, quase diríamos, infantis.
Notemos de passagem que ele foi apropriadamente cognominado de Doutor Angélico, título utilizado pela primeira vez por Santo Antonino de Florença (1389-1459)[3] e depois consagrado por São Pio V na bula Mirabilis Deus, de 1567, “talvez pelas suas virtudes, de modo particular pela sublimidade do pensamento e pureza da vida”, como observa o Papa Bento XVI[4].
Na Suma Teológica, São Tomás dedica todo um tratado ao tema dos anjos, discorre sobre eles também no tratado De Substantiis Separatis, no II Livro das Sentenças e em De Veritate, além de fazer esclarecedoras menções em várias outras obras.
De início, discordou da necessidade de haver um corpo angélico, assinalando que o conceito de “matéria espiritual” é de si contraditório e insustentável. Tal afirmação foi uma das que mais causaram polêmica no seu tempo e quase levou o Bispo de Paris, Étienne Tempier, a condená-lo como herege.
De outro lado, assinalou que todos os seres criados são necessariamente contingentes e compostos.
No caso dos entes corporais, há uma composição de matéria e forma. Mas existe uma composição anterior, inerente a toda criatura, a de essência e ato de ser (ou existência). Uma está para o outro numa relação de potência e ato[5]. Dessa maneira, embora nos anjos não haja matéria, são eles também compostos: sua essência se distingue realmente de seu ato de ser.
Ora, Deus é ato puro; n’Ele há identidade de essência e existência. Ele, explica o padre Bandera, “é absolutamente simples, e n’Ele não há nenhum tipo de composição. As criaturas não alcançam nunca a simplicidade própria de Deus e, consequentemente, implicam alguma composição. Mas para explicar esta composição não é necessário recorrer à matéria; a composição original, aquela inerente à criatura enquanto tal, é a de essência e existência”.[6]
Os anjos têm o ser por participação no Ser divino. Não existiam desde sempre, mas receberam em determinado momento o dom da existência, criados do nada. Isso, segundo a doutrina inovadora de São Tomás, já é suficiente para distinguir a criatura do Criador[7].
Ficava assim resolvido por São Tomás o problema referente à natureza angélica: uma criatura, por mais excelente que seja, é composta pelo menos de essência e existência; no Criador, a existência é idêntica à essência.
Como os anjos chegam ao conhecimento das coisas?
Ensina a Escolástica que todo conhecimento nos vem através dos sentidos. Assim, antes de nosso intelecto formar uma ideia sobre um objeto, intermedeiam os sentidos internos — senso comum, imaginação, memória, cogitativa —, organizando e preparando os dados brutos percebidos pelos sentidos externos, em representações imaginárias. Por fim o intelecto abstrai as características individuais do objeto particular, apreendendo sua essência, com a qual trabalhará para chegar a conceitos, raciocínios e juízos universais.
No processo de conhecimento humano há, pois, uma passagem do objeto particular conhecido para as ideias universais. Assim, se alguém, caminhando por uma rua, encontra de repente um animal, mesmo sem conhecer detalhes sobre ele (por exemplo, quando nasceu e quem é seu dono), saberá de imediato que se trata de um cão ou de um gato, por exemplo.
Depois de havermos conhecido vários cães, a essência canina está bem determinada em nossa mente por certas características as quais, sendo universais, aplicam-se a todos os entes daquela espécie. Por isso, a menos que haja alguma interferência (por exemplo, falta de boa iluminação no local), vendo um cão, saberemos que é um cão, quer se trate de um dálmata, um pastor alemão, um labrador ou um simples vira-latas, não importa seu tamanho, idade, cor ou outros traços individuais.
Nosso raciocínio trabalha, pois, com ideias universais. Por isso, entendemos perfeitamente uma notícia que diga: “Por determinação do Serviço Sanitário Estadual, todos os cães devem ser vacinados contra a raiva”. “Cães”, referindo-se à essência, designa todos os indivíduos da espécie canina.
No entanto, com o anjo o processo de conhecimento não pode dar-se da mesma maneira, uma vez que ele não tem corpo e, assim, não possui sentidos que captem os particulares.
Como, então, chega ele ao conhecimento das coisas?
Resumindo a doutrina de São Tomás a respeito, o professor Peter Kreeft afirma que “é próprio ao homem progredir na verdade por estágios, por meio de conceitos e de raciocínios até o conhecimento da verdade de um juízo”, enquanto que aos anjos é próprio conhecer “intuitiva e imediatamente, de uma vez, não por meio desse processo temporal”.[8]
Vejamos mais detidamente esses pontos.
As espécies (ideias) pelas quais os anjos conhecem as coisas não lhes vêm destas últimas. Assim, por exemplo, um anjo não precisa conhecer vários gatos para, abstraindo as características particulares de cada um, concluir na ideia de “gato”. O espírito angélico não está sujeito a um desenvolvimento gradual, mas começou a existir na plenitude de seu conhecimento. Nunca teve de aprender, no sentido próprio da palavra.
Em outros termos, no momento em que criou os anjos, Deus infundiu-lhes as ideias ou conceitos abstratos de todas as coisas, sem os quais eles não seriam capazes de conhecer as coisas particulares ou individuais. Quando um anjo “vê”, ou seja, aplica sua inteligência a algo novo, não adquire alguma ideia; apenas confere com o conceito universal presente já em seu intelecto.
Hierarquia piramidal e vertical
Entre os homens existe uma hierarquia que poderíamos chamar de piramidal, em que muitos dependem de um ou de alguns. Assim se dá numa família, na qual os filhos estão sujeitos aos pais; ou num país, onde os súditos dependem do monarca ou do Chefe de Estado. Na hierarquia familiar, os filhos têm uma igualdade relativa, não dependendo uns dos outros para fazer chegar aos pais seus desejos e questões. Evidentemente, a igualdade absoluta não é sustentável, pois um filho será mais inteligente ou mais forte — e, nesse aspecto, superior — que os outros. Em um nível mais elevado, tal desigualdade é que torna possível a constituição de uma sociedade.
Entre os anjos isso se passa de maneira diferente. Como cada um constitui uma espécie única, quanto mais elevado é o anjo, mais ricas são as ideias ou conceitos que lhe foram infundidos por Deus, ao criá-lo[9].
Poderíamos, talvez, imaginar que essa desigualdade fosse motivo de tristeza para os anjos inferiores. Entretanto, isso não se dá, pois as apetências, capacidades e glória de cada um são plenamente satisfeitas pelo próprio Criador, a partir do momento em que eles entraram na Visão Beatífica[10]. Não têm, portanto, possibilidade de sentimento de infelicidade. Pelo contrário, as qualidades dos anjos que lhes são superiores, constituem para eles motivo de admiração.
Como falam os anjos?
Postos estes esclarecimentos, podemos nos perguntar como se dá a “fala” dos anjos, e é São Tomás quem novamente nos responde: dá-se por iluminação e por locução.
Denomina-se iluminação o ato pelo qual um anjo superior dá a conhecer a um inferior alguma verdade sobrenatural de que teve conhecimento, graças à imediata revelação de Deus. Por exemplo, Deus manifestou diretamente a todos os seres angélicos a futura Encarnação do Verbo, mas não de modo igual: a uns comunicou mais, a outros menos, deixando aos anjos superiores o encargo de iluminar os inferiores, de modo que estes progredissem no conhecimento desse mistério até o dia de sua realização[11].
Conforme São Tomás, a iluminação é feita da seguinte maneira: em primeiro lugar, o anjo superior fortalece a capacidade de entender do anjo inferior; em segundo lugar, o superior propõe ao inferior aspectos particulares de verdades sobrenaturais que ele, anjo superior, “concebe de modo universal”.[12]
São Tomás ilustra esta doutrina dando o exemplo de um professor que, para ensinar uma matéria, divide-a em partes coerentes e ordenadas, acomodando-a à capacidade dos alunos. Evidentemente, estes terão um conhecimento fracionado, muito inferior ao do professor. Assim se passa com os anjos: “O anjo superior toma conhecimento da verdade segundo uma concepção universal, para cuja compreensão o intelecto do anjo inferior não seria suficiente”.[13] Para iluminar o inferior, o superior fragmenta e multiplica a verdade que ele próprio conhece de modo universal, tornando-a mais particular.
Esta forma de comunicação, por iluminação, só procede dos anjos superiores para os inferiores. Todavia, na locução, também os anjos inferiores falam aos superiores. Segundo o Doutor Angélico, a locução tem por finalidade manifestar algo interior àquele com quem se fala ou pedir-lhe alguma coisa: “Falar nada mais é do que manifestar a outro o próprio pensamento”.[14] Não se trata aqui de apresentar uma verdade sobrenatural, pois neste caso, teríamos a iluminação. Em outras palavras, toda iluminação é locução, mas nem toda locução é iluminação.
Evidentemente, a comunicação dos anjos entre si não se expressa com sons, gestos ou outro elemento material, pois sua natureza é só espiritual. Essa comunicação se dá por um ato de vontade, pelo qual um anjo dirige o pensamento ao outro, dando a conhecer conceitos que possui. Pode, inclusive, dar a conhecer algo a uns e não a outros, conforme queira.
Os anjos se comunicam também com Deus, nunca porém como o agente se dirige ao paciente ou, segundo a terminologia humana, o mestre ao discípulo. “O anjo fala a Deus — explica São Tomás —, seja consultando a divina vontade a respeito do que deve ser feito, seja admirando a excelência divina que ele nunca compreende a fundo”.[15]
O tema das conversas angélicas
Claro que o principal objeto de conversa dos anjos é Deus, pois toda criatura tende naturalmente a voltar-se para o Criador, sobretudo em se tratando de seres tão perfeitos como eles[16]. Além do mais, estando na Visão Beatífica, estarão sempre contemplando novos aspectos d’Ele durante toda a eternidade. Sendo Deus infinito, por mais que os anjos do Céu O vejam no seu todo, não O veem totalmente, o que é impossível a qualquer criatura.
Eles conversam também sobre os desígnios divinos a respeito do universo material, no qual o elemento mais importante é o homem. Não podem, pois, deixar de interessar-se enormemente pela ação divina na História; assim, os anjos superiores comunicam aos inferiores o que “veem” em Deus a tal propósito.
Poderíamos, pois, imaginar um diálogo no qual nosso anjo da guarda pergunta a um anjo mais elevado como compreender melhor nossa psicologia. Por exemplo, por que procedi de tal modo, por que deixei de agir em tal ou qual ocasião, etc. O anjo superior, além de dar ao anjo da guarda as explicações, acrescentaria uma orientação sobre como guiar nossa alma da maneira mais conforme ao plano de Deus.
Uma coisa é certa: nossos anjos da guarda estão constantemente conversando sobre nós com os anjos que lhes são superiores, de maneira que existe uma “cascata”, ou “cadeia”, de anjos interessados na santificação e salvação de cada um de nós.
Que tal pensamento contribua para aumentar nossa devoção aos santos anjos, esses gloriosos intercessores celestes, dos quais muitas vezes nos esquecemos!?
Pe. Louis Goyard, EP
[1] BANDERA GONZÁLEZ, Armando. Introducción a las cuestiones 50 a 64. In: Suma Teológica. 4.ed. Madrid: BAC Maior, 2001, p.496.
[2] Sobre a simplicidade divina, lembremo-nos que no plano espiritual, ao contrário do que ocorre no plano material, quanto mais simples é algo, mais é perfeito. Cf. CREAN, Thomas. A Catholic replies to professor Dawkins. Oxford: Family Publications, 2008, p.29-32.
[3] CLÉMENT, André. La sagesse de Thomas d’Aquin. Paris: Nouvelles Editions Latines, 1983, p.171-173.
[4] Audiência Geral, 2/6/2010. Diversos autores assinalam que tal título é devido à acuidade de seu pensamento, como que angélico. CLÉMENT, op. cit., p.171; HEUSER, Herman Joseph. In: The American ecclesiastical review. 1923, v.LXVIII, p.92: “Mais propriamente por causa de seu extraordinário poder intelectual, que lhe permitia falar com a língua dos anjos”.
[5] SÃO TOMÁS DE AQUINO. Suma Teológica, I, q.50, a.2, ad3.
[6] BANDERA, op. cit., p.496.
[7] Idem, ibidem.
[8] KREEFT, Peter. Summa of the Summa. San Francisco: Ignatius, 1990, p.328.
[9] SÃO TOMÁS DE AQUINO. Suma Teológica, I, q.106, a.4, ad.1.
[10] Tudo o que temos referido a propósito da natureza angélica aplica-se, evidentemente, tanto aos anjos do Céu, confirmados em graça, quanto aos anjos decaídos. Claro está que, ao contrário destes últimos, os santos anjos, mesmo quando no estado de prova, nunca cederam a movimentos de inveja, seja em relação a Deus, seja em relação aos outros anjos.
[11] JOSEPH MACINTYRE, Archibald. Os anjos, uma realidade admirável. Rio de Janeiro: Revista Continente, 1983, p.255.
[12] SÃO TOMÁS DE AQUINO, op. cit., I, q.106, a.1.
[13] Idem, ibidem.
[14] Idem, I, q.107, a.1.
[15] Idem, I, q.107, a.3.
[16] É evidente que os santos anjos conversam sobre Deus transidos de amor, admiração, desejo de crescer no conhecimento d’Ele e servi-Lo, ao passo que os demônios são movidos por ódio e revolta: seu non serviam ecoa por toda a eternidade.