Os mandamentos impressos no coração do Homem

Redação (21/08/2010, Virgo Flos Carmeli) Todo ser humano, criado à imagem e semelhança de seu Criador, é chamado a participar da bem-aventurança celeste mediante o cumprimento de sua finalidade sobre a terra: com seu intelecto conhecer a Verdade absoluta, e com sua vontade aderir ao Bem supremo, que é o próprio Deus. Por isto, deverá viver uma vida reta, repleta de justiça, contribuindo com seus valores para que também a sociedade, na qual está inserido, atinja o mesmo objetivo. Contudo, após o pecado das origens, o homem é cotidianamente violentado pelas suas más paixões, por ter perdido a integridade e o pleno domínio que possuía sobre seu corpo, outrora em perfeita tranquilidade. Necessita ele agora de uma lei que ordene seus atos, afim de não vir a desviar-se do caminho que o levará à divina beatitude. Esta lei é denominada natural.

A temática do presente trabalho será discorrer sobre a lei natural que rege o agir do homem, auxiliando-o diretamente a salvar-se.

1. A lei é a expressão da norma moral

Em qualquer época histórica ou lugar do mundo, sob quaisquer condições, o homem sempre buscou a felicidade. Criatura de Deus, tem as potências de sua alma direcionadas, ainda que não perceba, para a posse do Bem Supremo. Assim, a inteligência deseja sofregamente possuir o conhecimento absoluto, a vontade almeja amá-lo ardentemente, e ambas não serão saciadas enquanto não se encontrarem com o ser pleno e perfeito, ou seja, Deus. A este respeito comenta Gambra (1973, p. 275) que “Deus como criador da natureza humana é o bem supremo para o qual, consciente ou inconscientemente, o homem tende ao desejar as diferentes coisas que pretende, naquilo que possuem de particularmente bom”. Portanto, a felicidade completa, a realização plena de suas potencialidades, só se encontrará na contemplação ou posse de Deus. O ser humano caminha neste mundo qual peregrino em busca do mundo sobrenatural em que espera entrar após a morte (p. 276).

Tendo uma finalidade, deve cada homem orientar sua atuação moral rumo a ela, diria o conselheiro Acácio, profeta das evidências. Aliás, entende-se a própria finalidade como “aquilo que move alguém a praticar determinado ato; o bem (ou o mal) que a pessoa tem em vista ao agir” (BETTENCOURT, 2003, p. 13).  Esta orientação se faz através da norma de moralidade, “regra ou medida a qual o sujeito pode reconhecer os seus atos como bons ou maus, segundo se conformem ou não com ela” (GAMBRA, 1973, p. 279), podendo ser denominada lei, que é a expressão da norma moral (p. 278).

2. Os diferentes tipos de lei divina

A lei divina – não será tratada aqui a lei humana –, aquela promulgada pelo próprio Deus que, como afirma São Tomás, “é uma determinação da razão em vista do bem comum, promulgada por quem tem o encargo da comunidade (apud BETTENCOURT, 2003, p. 17), pode dividir-se em três tipos: eterna, natural e positiva.

Como a lei natural tem seu fundamento na lei divina, faz-se necessário abordá-la sinteticamente para tornar o tema mais claro.

2.1 A lei divina eterna

A lei divina eterna é considerada “o plano da sabedoria divina, concebido desde toda a eternidade, para levar as criaturas ao seu Fim supremo” (2003), ou ainda, como Santo Agostinho e São Tomás definiram, “a razão ou vontade de Deus que manda conservar a ordem natural ou proíbe perturbá-la” (apud FERNÁNDEZ, 2004, p. 164). Para um não cristão pode ser definida como a ordem do cosmos. A Declaração sobre a Liberdade Religiosa, Dignitatis humanæ, do Concílio Vaticano II, assim a ela se refere:

… a norma suprema da vida humana é a própria lei divina, eterna, objetiva e universal, pela qual Deus ordena, dirige e governa todo o mundo e os caminhos da comunidade humana, segundo os desígnios da Sua Sabedoria e do Seu Amor (n. 3)

2.2 A lei divina natural

A lei divina natural é uma participação na lei eterna pela criatura racional. É a mesma lei divina referente ao universo em geral, que recebe o nome de natural na parte que regula o homem, fisicamente capaz de cumpri-la ou violá-la (GAMBRA, 1973). Continua a este respeito a Declaração Dignitatis humanæ, ao esclarecer o significado da lei eterna: “Deus torna o homem participante de sua lei, de maneira que o homem, por suave disposição da Providência divina, pode conhecer cada vez melhor a verdade imutável” (n. 3).

Por ser parte da lei divina ela tem também Deus como seu legislador. Contudo não se encontra escrita concretamente, pois tem um conteúdo geral e amplo que não permitiria esta formulação. Ao contrário, encontra-se impressa na consciência de cada indivíduo, de tal forma que por mais rude que seja um homem, este sabe se os atos que pratica são bons ou maus (GAMBRA, 1973). A Constituição pastoral Gaudim et Spes reafirmou esta doutrina: 

Na intimidade da consciência, o homem descobre uma lei. Ele não a dá a si mesmo. Mas a ela deve obedecer. Chamando-o sempre a amar e praticar o bem, evitar o mal, no momento oportuno a voz desta lei lhe faz ressoar nos ouvidos do coração: ‘faze isto, evita aquilo’. De fato, o homem tem uma lei escrita por Deus em seu coração. Obedecer a ela é a própria dignidade do homem, que será julgado de acordo com essa lei. A consciência é o núcleo secretíssimo e o sacrário do homem, onde ele está a sós com Deus e onde ressoa a voz de Deus (n. 16).

Há certas escolas filosóficas que não a admitem, tais como o positivismo e o empirismo. Explicam que no homem existem apenas certas inclinações mais ou menos persistentes para atuar num certo sentido, porém variáveis em função dos tempos e dos países. Aceitam como efetiva somente a lei positiva humana. No entanto, na prática percebe-se patentemente a existência da lei natural, porque os homens aceitam e deixam certos princípios e normas, apesar de desviados e obscurecidos em certas ocasiões, presidirem suas vidas independentemente do tempo e lugar. De outro lado, alguns que constantemente não respeitam a lei positiva do seu país, acatam em sua conduta pessoal normas de honestidade e lealdade, que consideram invioláveis e válidas para si mesmos (GAMBRA, 1973).

3. A existência da lei natural nas antigas civilizações

A história confirma que os povos primitivos já percebiam a existência da lei natural e a praticavam. Entre estes povos estavam os greco-romanos. Preceitos tais como não matar, não roubar, cultuar a divindade, eram reconhecidos em sua sociedade. Isto se dava porque a lei natural é inteiramente racional. A razão aponta a sua existência recorrendo a dois argumentos. O primeiro deles refere-se à existência do próprio Deus:

Quem admite a existência de Deus Criador, admitirá que tenha infundido dentro das criaturas livres, feitas à sua imagem, algumas grandes normas que encaminhem o homem à consecução da vida eterna. Essa orientação interior é precisamente o que se chama ‘a lei natural’ (BETTENCOURT, 2003, p. 18).

Deus não pode criar nada que não seja para si mesmo. Ao designar o homem à bem-aventurança eterna, deu-lhe a lei natural para orientar seus atos.

            O segundo argumento baseia-se numa possível negação desta lei:

A negação da lei natural leva a dizer que os atos mais abjetos podem vir a ser considerados virtudes, e vice-versa. Quem não conhece a lei natural, atribui ao estado civil poder de definir o bem e o mal éticos; à vontade do Estado tornar-se a fonte da moralidade e do Direito; desde princípio segue-se a legitimação do totalitarismo e da tirania,de que testemunha o século XX (BETTENCOURT, 2003, p. 18).

A lei natural é que determina serem bons ou maus os atos humanos.

Uma prova concreta de sua existência, ademais, é a Declaração Universal dos Direitos do Homem, em 1948, pelas Nações Unidas, que não é senão sua reafirmação. Enfim, assim como no âmbito físico o homem segue certas leis (não comer pedras, não deixar de dormir) também no plano moral o corpo exige dele certas normas. O desprezo destas normas leva-o à desintegração psíquica, e quiçá física (BETTENCOURT, 2003, p. 18).   

            As normas morais são também necessárias por duas razões, como esclarece João Konzen,           

a) A consciência moral da pessoa não capta de modo intuitivo e direto os valores morais, mas pela mediação da fórmula normativa que os expressa. Isso é uma exigência da psicologia do conhecimento humano. b) A condição social do ser humano exige a expressão normativa dos valores morais subjetivos, para possibilitar o necessário intercâmbio, a aprendizagem, a crítica, a formulação de um ethos comunitário, um consenso mediante a reciprocidade das consciências (2007, p. 154-155)

4. O Decálogo

De outro lado, Deus, criador de todo o universo, tendo escolhido Israel como seu povo, revelou-lhe sua lei, preparando-os assim para a vinda do Messias. Aos pés da montanha, coberta por uma espessa nuvem, ao som de uma trombeta, Moisés falou com Deus e Ele lhe respondeu através de trovões (Ex 19, 16-25). Por fim Deus “pronunciou” o Decálogo. Santo Agostinho comenta que “Ele escreveu nas tábuas da lei aquilo que os homens não conseguiram ler em seus corações” (apud Catecismo da Igreja Católica, 1962). Estas leis estavam declaradas e autenticadas no interior da aliança da salvação. Deste modo, o decálogo é uma luz para iluminar a consciência dos homens, manifestar-lhes os caminhos de Deus e protegê-los do mal (2070).

Ora, encontrando-se na Sagrada Escritura, tal lei é parte integrante e essencial da revelação. Delineiam os deveres imprescindíveis e, por isso, os direitos humanos fundamentais, inerentes à natureza da pessoa humana.

5. Harmonia entre lei natural e Decálogo

Ora, de acordo como o Catecismo da Igreja Católica “o Decálogo contém uma expressão privilegiada da ‘lei natural’ (2070). Isto quer dizer que a substância moral existente em ambos é a mesma, ainda que em um de forma mais completa, como escreveu Santo Irineu, “Deus enraizara no coração dos homens os preceitos da lei natural. Inicialmente Ele se contentou em lhos recordar. Foi o Decálogo (apud 2070).

Embora acessíveis à razão, os preceitos do da Lei de Deus foram revelados, e para chegar a um conhecimento mais perfeito e correto das exigências da lei natural, a humanidade pecadora tinha necessidade dessa revelação. Conhece-se os Mandamentos divinos pela Revelação, proposta por intermédio da Igreja e por meio da consciência moral (2071).

Enfim, este trabalho não abarca todo o conteúdo referente à lei natural: ele é por demais extenso para limitar-se a tão pequeno espaço. Há inúmeros  livros e tratados de moral ricos em comentários e opiniões de diversos autores que aqui, por brevidade e pelo desejo de se apresentar uma síntese acadêmica sobre o referido assunto, não foram expostos. Além disso, para se conhecer mais profundamente a lei natural, a normativa dada por Deus ao ser humano a fim de obter a divina beatitude, é essencial uma densa análise das outras leis.

Seja por meio do Decálogo ou da lei natural impressa na alma, todos são convocados ao grau eminente das virtudes, através do qual, realçando seus valores e os do próximo, atingirão a idade perfeita de Cristo em sua plenitude.

Ítalo Santana Nascimento – 2º Ano de Teologia


REFERÊNCIAS

FERNÁNDEZ, Aurelio. Compêndio de Teología Moral. 3. ed. Madrid: Ediciones Palavra, 2002.

FERNÁNDEZ, Aurelio. Moral Fundamental: Iniciação Teológica. Tradução de Marta Mendonça. Lisboa: Diel, 2004.

GAMBRA, Rafael. Noções de Filosofia. Tradução de Levi António Malho. Porto: Livraria Tavares Martins, 1973.

CATECISMO DA IGREJA CATÓLICA. Edição revisada de acordo com o texto oficial em latim. 11. ed. São Paulo: Loyola, 1999.

JOSÉ SALIM, Emílio. Sciencia e Religião. Rio de Janeiro: Escolas Profissionais Salesianas, 1937.

KONZEN, Pe. João. Ética Teológica Fundamental. São Paulo: Paulinas, 2007.

VIDAL, Marciano. Moral de Atitudes: Moral Fundamental. Tradução de Pe. Ivo Montanhese. 5. ed.Aparecida, SP: Editora Santuário, 1978

TAVARES BETTENCOURT, Pe. Estevão. Curso de Teologia Moral. Rio de Janeiro: Escola Mater Eclesiae, 2003.

VIDAL, Marciano. Nova moral fundamental: O lar teológico da Ética. Aparecida, SP: Editora Santuário; São Paulo: Paulinas, 2003.