Redação (16/06/2010, Virgo Flos Carmeli) A Santa Igreja, já no seu nascedouro, passou por numerosas provações. Dentre elas podemos enumerar as perseguições do Império Romano, que derramou uma quantidade enorme de sangue inocente, fazendo com que numerosos cristãos pagassem com a própria vida o fato de abraçarem a Fé Católica. Mas havia um outro inimigo muito mais sutil e ladino que já não visava tirar a vida do corpo, como o fizeram os ímpios imperadores romanos, mas sim arrancar e destruir nas almas a Fé. A este propósito bem afirmou o Divino Salvador: Não temais aqueles que matam o corpo, mas não podem matar a alma; temei antes aquele que pode precipitar a alma e o corpo na geena (Mt 10, 18).
Este pérfido inimigo chama-se heresia, e se vestiu de diversas roupagens ao longo dos séculos, ora negando diretamente as verdades da Fé, outras vezes procurando reinterpretá-la de acordo com falsos critérios.
Mas apesar disso, podemos afirmar com São Paulo: É necessário que entre vós haja partidos para que possam manifestar-se os que são realmente virtuosos (ICor, 11,19); pois assim como um músculo que passa muito tempo na ociosidade corre o risco de atrofiar-se, algo análogo se passaria caso a Santa Igreja não tivesse heresias e inimigos a combater. As heresias contribuem em larga medida para o desenvolvimento da Doutrina Católica, pois uma vez sendo necessário refutar aos falsos ensinamentos, acaba Ela desenvolvendo a doutrina e fortalecendo suas sagradas “muralhas” contra os ataques de seus adversários internos e externos.
Um dos grandes baluartes dessa “muralha” foi, e continua sendo, Santo Ireneu de Lião. Este trabalho visa dar um breve apanhado de sua vida, e de sua obra mestra o Adversus Haereses .
1. Vida de Santo Ireneu
Do período subapostólico, (do final do primeiro século à metade do segundo), até o século sexto, a Santa Igreja teve a seu serviço uma plêiade de homens insignes em santidade, sabedoria e ardor apostólico; entre eles está Ireneu.
Paira um mistério sobre sua vida; o pouco que se sabe a seu respeito é que nasceu por volta do ano de 150, que sua cidade natal é provavelmente Esmirna, situada na Ásia menor. Tudo indica que sua família era cristã, pois como ele mesmo descreve em uma de suas cartas, ainda quando criança frequentou as pregações do bispo São Policarpo de Esmirna, que por sua vez fora discípulo do apóstolo São João Evangelista, por isso foi-lhe conferido o título de vir apostólicus. Eis o trecho da carta que Santo Ireneu (1995, p.15) escreveu a Florino, ex condiscípulo de São Policarpo, que apostatara e tornara-se valentiniano, lembrando a ocasião em que ambos se encontraram na casa deste santo:
com efeito, te conheci (a Florino), sendo eu criança ainda, na Ásia menor, na casa de Policarpo. Tu eras então personagem de categoria na corte imperial, e procuravas estar em boas relações com ele. Dos acontecimentos daqueles dias me recordo com maior clareza que os recentes, porque o que aprendemos em crianças cresce com a alma e se faz uma mesma coisa com ela, de maneira que até posso dizer o lugar onde o bem aventurado Policarpo costumava sentar-se, como entrava e como saia, o caráter de sua vida, o aspecto do seu corpo, os discursos que fazia ao povo, como contava suas relações com João e com os outros que haviam visto ao Senhor…
Os historiadores, com base neste texto, afirmam que Santo Ireneu foi um dos últimos homens apostólicos de sua era. Ele próprio ao comentar os padres apostólicos dizia que eles ainda tinham a voz dos Apóstolos nos ouvidos e os seus exemplos diante dos olhos (apud GLAVAM, 2002).
Por razões desconhecidas, deixou a Ásia menor e se dirigiu à Galia, por volta do ano de 177. Estabeleceu-se na cidade de Lyon, onde foi ordenado presbítero.
A cristandade enfrentava nesse período um grande inimigo: a heresia do montanismo. A cidade de Lion, situada na antiga Gália, atual França, passava por numerosas dificuldades e perseguições por parte desses herejes. Santo Ireneu foi enviado a Roma para encontrar-se com o Papa Santo Eleutério, com o fito de servir de mediador na questão da heresia e para pedir ao Santo Padre uma condenação categórica do montanismo. A carta, que nessa ocasião entregou ao Papa, trazia muitos elogios à sua pessoa e dava dele uma excelente recomendação. Eusébio de Cesaréia (apud QUASTEN, 2008) cita este trecho em sua história eclesiástica: “esperamos que pedindo a nosso irmão e companheiro que te leve esta carta, tenhas para com ele o apreço devido a seu zelo pelo testamento de Cristo”.
Regressando de Roma, foi eleito, por aclamação popular, bispo de Lyon, sucedendo na cátedra episcopal a São Potino, que morreu devido aos maus tratos recebidos na prisão por parte dos montanistas, com noventa anos de idade.
1.1. Querela da Páscoa
Com base nos poucos traços biográficos relegados à posteridade e fundamentados em suas obras percebemos o caráter combativo de Santo Ireneu e o seu gosto pela polêmica. Um exemplo palpável foi a controvérsia com relação à data da Páscoa, na qual o santo entrou e acabou apaziguando a questão. Helcion Ribeiro (1995, p.15) na introdução de uma das obras de Santo Ireneu transmite os dados históricos dessa celeuma:
diziam os bispos da Ásia – sob a liderança de Policrates de Éfeso – conservar a data hebraica da festa da Páscoa, adotada por João; para as Igrejas ocidentais e algumas do Oriente era outra a data celebrada. Em determinado momento o Papa avocou a si a decisão, ameaçando com a excomunhão os que não o seguissem: prenunciava-se assim calorosa cisão na Igreja. […] Ireneu convidava-o a não romper a unidade cristã por esta questão disciplinar e secundária, afinal eram ambas tradições vindas dos apóstolos em contextos diversos.
Pacificados os ânimos, Santo Ireneu − segundo o dizer de Eusébio de Cesaréia – fez jus ao significado etimológico de seu nome, cujo radical Irene significa paz.
1.2. Sabedoria e ciência unidas à santidade
Constitui um fato inegável, a erudição de Santo Ireneu. Ao longo de suas obras denota um profundo conhecimento bíblico; nelas encontramos a citação de quase todos os livros bíblicos. Além disso, nutriu contatos com grandes sábios e santos de sua época, como São Clemente Romano, Teófilo de Antioquia, Clemente de Alexandria e o já acima citado, São Policarpo de Esmirna. O conhecimento que possuía dos autores clássicos demonstra rica cultura e uma arte de “filtrar” os dados necessários para o enriquecimento literário de seus escritos. Neles encontramos citações de Homero, Hesíodo, as doutrinas de Platão e Aristóteles, entre outros.
Um dos traços preponderantes de sua vida, foi o fato dele ter unido essa erudição e sabedoria a um profundo amor a Deus, pois suas obras, além de terem como base um profundo alicerce cultural e filosófico, exalam o suave perfume da santidade e levam aqueles que as lêem a crescer no amor a Deus.
Muito pouco se sabe a respeito de sua morte. Uma tradição antiga, que remonta a São Jerônimo a ao Pseudo-Justino, afirma que foi martirizado por heréticos, por volta do ano de 202, juntamente com outros cristãos, em um massacre que houve na cidade de Lião, sob o reinado do imperador Sétimo Severo.(IRENEU DE LIÃO, 1995). A Santa Igreja o venera como mártir, celebrando-o a 28 de junho.
Apenas pelos dados acima enunciados chegaríamos à conclusão de que toda a obra empreendida por Santo Ireneu foi magnífica, entretanto, seu maior mérito foi o de ter identificado, reconhecido e refutado radicalmente o gnosticismo. De seu trabalho estabeleceram-se bases e princípios gerais para combater todas as heresias que ameaçavam a Esposa Mística de Nosso Senhor Jesus Cristo.
Lucas Antonio Pinatti – 2º Ano de Teologia