Redação (17/09/2013, Virgo Flos Carmeli) “Nenhum escritor cristão da antiguidade teve tantos biógrafos como ele”[1], contudo, nenhum deles fornece os dados para fixar exatamente o seu nascimento; estima-se que terá se dado na década que discorreu de 344 a 354.
Nascido em Antioquia, de uma família cristã nobre, João ficou órfão de pai ainda menino, quando sua mãe, Antusa, mulher virtuosa, possuía apenas vinte anos. Começou a frequentar os centros de ensino aos dezesseis anos, iniciando pela filosofia, onde assistiu às aulas de Andragácio — “nome que aflora na história graças a seu ilustre discípulo”.[2] Suas aulas de retórica ficaram a cargo do famoso sofista Libânio. Este, logo notou as grandes qualidades de que o discípulo era dotado, como quando, por exemplo, admirou-se com um discurso composto por João em honra de uns príncipes, durante a época em que trabalhava no foro; chegando a lê-lo a outros companheiros, “amigos inteligentes”, conta depois a João, numa carta, que: “todos me interrompiam com exclamações e demonstrações de mais viva admiração. Alegra-me que juntamente com as tarefas do foro, cultives as letras. Ditoso o orador que sabe louvar assim! Ditosos os que merecem ser louvados por semelhante orador!”[3]
A tal ponto João se destacava em seus dotes retóricos que Libânio, prestes a morrer disse: “De bom grado nomearia João meu sucessor, se os cristãos não o tivessem ganho para a sua seita”. Assim iniciou sua carreira João, a quem, chamariam num futuro não tão distante, de Crisóstomo (boca de ouro).
1. A sedução do deserto
A maturidade de espírito veio de encontro ao Crisóstomo ainda muito jovem, e ele percebeu o vazio que se escondia por detrás das artes que estudava. “Aos dezoito anos de idade se rebelou contra os professores de ‘palavrório’, e encantou-se com a doutrina sagrada”.[4]
Foi movido por estes sentimentos que em 367 passou a frequentar o catecumenato, sob a direção do Bispo de Antioquia, Melécio; de quem o próprio João daria testemunho no futuro: “A santidade refletia-se no seu rosto, que era toda uma pregação”.[5] O Santo Bispo vislumbrou, desde logo, naquele jovem o futuro que o esperava. A partir de então se fazia acompanhar por ele, como de um secretário. Havendo João servindo-lhe três anos, recebeu por fim as águas regeneradoras do Batismo, e foi promovido leitor.
Neste período é que João torna-se aluno de Diodoro, condiscípulo de Teodoro de Mopsuéstia. “Enquanto João estudava, Melécio partiu para seu terceiro desterro, nas poeirentas solidões da Armênia. A separação foi profundamente sentida por Crisóstomo e acabou por decidi-lo a dizer adeus a toda e qualquer carreira temporal e a por em execução o projeto de retirar-se para o ermo que havia tempos germinava em seu peito”.[6] Teria se retirado do mundo a não ser por sua mãe, que lhe “pediu não a deixasse uma segunda vez viúva”.[7]
Porém, apesar de aceder ao pedido, João procurou conciliar dentro dos limites do possível a sua vocação com seu afeto filial, “organizando sua vida ao estilo monástico, e isso dentro de sua própria casa”.[8] Já não frequentava as expansões da vida social, dava-se ao jejum, abstinha-se do sono a fim de passar a noite lendo as Escrituras, à luz de uma pequena lamparina.
Continuou cultivando o trato com alguns amigos íntimos que se tornaram monges, como Teodoro e Basílio. Em Antioquia não demorou muito a que criasse fama este grupo de monges, e o nome do filho de Antusa passou a andar na boca de todos.
Certa vez, reuniram-se os Bispos da Síria em Antioquia, e decidiram elevar João e Basílio ao episcopado. O último foi chamado às pressas de um cenóbio próximo, à espera de que o Crisóstomo o seguisse. Ninguém contava com a decidida negação de João, que se dizia indigno. Tentaram de todas as maneiras dissuadi-lo, mas fazia-lhes ouvidos moucos. Também o amigo Basílio era inflexível: só aceitaria ser ordenado em companhia de João.
João Crisóstomo decidiu-se a utilizar um estratagema. Sem nada dizer ao amigo, deixou correrem todos os preparativos, mas no dia da cerimônia despareceu sem deixar rastro. Ele mesmo narra este episódio, e a primeira conversa que teve com o ludibriado após a ordenação.
Ao que parece este episódio coincidiu em certa medida com a morte de sua mãe, pelo que pôs em prática o seu projeto longamente esperado de retirar-se para o deserto. Seria por volta de 374, quando vendeu todo seu patrimônio e dirigiu-se às montanhas vizinhas da cidade, a fim de unir-se à vida dos cenóbios, os quais já eram naquela época “como as estrelas que brilham na noite”, como diria João mais tarde.
Encontrou-se com um eremita ancião, de nome Syro, “mestre veterano de santidade”[9], com quem compartiu a vida durante quatro anos.
Passado este período, dirigiu-se a uma caverna, onde levou vida solitária por mais dois anos, dedicando-se a estudar as Escrituras.
“A maior parte do tempo passava sem dormir, estudando os testamentos de Cristo para despejar a ignorância. Ao não recostar-se durante esses dois anos, nem de noite nem de dia, se atrofiaram-lhe as partes infra gástricas e as funções dos rins ficaram afetadas pelo frio. Como não podia valer-se por si só, voltou ao porto da Igreja.”[10]
2. Um orador a serviço da Igreja
João voltou a Antioquia no ano de 381, e logo foi ordenado diácono pelo bispo Melécio. Permaneceu cinco anos recuperando-se da grave enfermidade que o acometera, durante os quais, além de servir a Igreja como diácono, enriqueceu as letras cristãs com mais alguns livros. Em pouco tempo seus escritos já corriam de mão em mão, por parte dos estudantes, e seu nome ganhava grande fama.
É o ano de 386, João beira os quarenta anos, apesar de não ter recuperado inteiramente a saúde, já tem o suficiente para começar seus trabalhos. O sucessor do Bispo Melécio na sede de Antioquia, Flaviano, ordena-lhe Sacerdote, e nomeia-o como pregador oficial da diocese; pois a idade já o impedia de fazê-lo.
Durante doze anos, desde 386 até 397, cumpriu este ofício com tanto esmero, destreza e esplendor que assegurou para si o título do maior orador sagrado da cristandade. Foi durante este período que pronunciou suas mais famosas homilias.[11]
Em geral fazia suas pregações três vezes na semana, despertando entusiasmo tamanho que era comum, passando em frente à igreja, ouvir os aplausos da multidão apinhada para ouvi-lo. Porém o “traço que nos revela melhor a capacidade que tinha de ferir os corações e as santas iras que suscitava”, eram “os prantos que estalavam com ímpeto durante seus sermões”.[12]
Ele não era simplesmente um orador “entusiasta de monólogos”. Tinha o fim bem claro diante dos olhos, e o que buscava era o bem das almas. Não cessava de exortar aquela sociedade, sedenta de festas, espetáculos e prazeres a voltar-se para Deus, abraçar os caminhos da virtude e os mandamentos da Igreja.
3. O episódio das estátuas[13]
Famosos tornaram-se, sobretudo os sermões por ele realizados durante a quaresma de 387, somente um ano após sua ordenação sacerdotal.
Pelo mês de fevereiro ou março deste ano, o Imperador Teodósio ordena que se intensifiquem os impostos, por razões discutidas. Envia às cidades oficiais encarregados de estabelecer este aumento. Em Antioquia a publicação de tal ordem foi imediatamente precedida de um levante popular, pois este novo imposto não era somente um aumento nas despesas, mas mediam-se os campos, registravam-se os animais, cadastravam-se os homens, etc.
A população levantou-se violentamente. Quebraram as estátuas do Imperador, arrastaram por praça pública efígies da imperatriz e de seus filhos, e lançaram-nas no Oronte. O levante durou três horas, mas as consequências logo se fizeram sentir. O governador, além de ordenar uma repressão, enviou um informe a Constantinopla a fim de pedir instruções; pois naquele tempo um ultraje como este era crime lesa-majestade, e certamente seria punido com a pena capital, tanto mais se tratando de Teodósio, Imperador de ânimo abrasado.
Felizmente o enviado encontrou Teodósio num momento de ‘bom-humor’. Contentou-se o soberano com mandar fechar todos os centros de lazer e de diversões que havia em Antioquia, privá-la de seus privilégios de metrópole, e excluí-la da distribuição anual do trigo.
Reservou, contudo, a vingança principal para quando se tivesse feito uma investigação minuciosa, descobrindo bem exatamente quem eram os culpados.
As distâncias entre Antioquia e Constantinopla eram consideráveis, demorariam os comissários do imperador a chegar. Enquanto isso, pairou sobre o ar e sobre os ânimos de todos, um forte vento de sentimentos religiosos, diante da espada imperial que pendia sobre as cabeças.
É irrelevante dizer que o presbítero João soube aproveitar esta circunstância. “Durante toda a Quaresma, permaneceu ao pé de seu púlpito como um artilheiro ao pé do canhão”.[14] Não cessou um só instante de impulsionar todos à pratica das virtudes cristãs, fosse através de rogos, ou mesmo por meio de duras reprimendas, sempre convidando os fiéis à conversão, animando-os de todas as maneiras.
Sua ação, entretanto, não restringiu-se aos púlpitos. Organizou uma estratégia para evitar o pior: rogou ao Bispo Flaviano que se dirigisse a Constantinopla, a fim de interceder diretamente diante do Imperador. Difícil foi convencer o epíscopo, que por sua avançada idade, receava por uma viagem tão longa, mais ainda em inícios de inverno.
Por fim, tendo cedido o ancião, pôs-se em marcha uma grande comitiva muito bem escolada e instruída, toda ela organizada por João, levando diversos presentes à pessoa imperial; era constituída por pessoas selecionadas pelo presbítero, o qual lhes instruíra acerca de seu modo de proceder na corte, do que deveriam dizer e fazer; sobretudo as boas relações com as pessoas do palácio (copeiros, cantores, atores, etc.).
Foi organizado, pelo próprio Santo, um verdadeiro estratagema, de maneira a sempre estar sendo lembrado ao Imperador o caso da cidade. S. João organizou verdadeiros slogans que deveriam ser repetidos em determinados momentos do dia. Por exemplo, sempre que fosse servido um prato, ou um copo de água, diriam ao Imperador: “Pensai que não se trata de uma, duas ou dez almas, mas de um número incalculável de pessoas…”, ou ainda: “Trata-se da cidade onde foi pronunciado por primeira vez o nome de cristão. Rendei homenagem a Jesus Cristo e respeitai esta cidade, a primeira que deu a seus discípulos um nome doce e venerado”.[15]
O próprio Bispo levava consigo o discurso, escrito pelo Crisóstomo, que deveria ser pronunciado diante do Imperador.
Mesmo diante de situações como estas, a arte não abandonava as palavras de João, e anunciou aos habitantes de Antioquia que o Prelado, “apesar de ancião, pôs-se a caminho como um jovem, e o seu valor empresta-lhe asas!”[16]
Pouco depois, chegaram a Antioquia os enviados de Teodósio. O terror acometeu toda população, a ponto de muitos tentarem fugir, o que foi impedido graças ao governador, Tisameno, quem provou que estes dois não vinham com ordem expressa de punição, mas sim a fim de investigar tudo quanto ocorrera. Mal tinham recebido esta notícia, os antioquenos, antes receosos e recolhidos, distenderam seus ânimos, julgando que já não tinham o que temer. Voltaram as costas a tudo quanto haviam ouvido dos lábios de João, e reincidiram nas práticas e festas com os pagãos.
Porém, com o avançar das investigações foram-se enchendo os calabouços. Os detidos eram submetidos a rigorosas torturas, a fim de delatar sua parte no crime. Não tardou a que as cabeças começassem a rolar. A cidade de Antioquia em pouco tempo entrou em luto, e por todos os lados viam-se as mulheres, cobertas de negro, indo ao pretório, levando suas crianças pelas mãos, a fim de rogar por seus maridos e filhos. Quadro desolador, que o próprio S. João pintará posteriormente em seus sermões.
“João sabia muito bem que a única forma de abrandar o furor dos verdugos consistia em mostrar-lhes o exemplo de um verdadeiro comportamento cristão”[17]. Enviou um mensageiro às montanhas, rogando que os eremitas viessem em auxílio dos irmãos.
Foi grande a impressão que o aparecimento daqueles “homens, de samarra pastoril, pele tostada e barba hirsuta, com um brilho sombrio no olhar”[18]; que contudo eram, às vistas de João como “anjos do céu”, e “leões a caminhar pelas ruas, […] que obrigam o adversário a fugir pelo seu simples aspecto e pela força de sua voz”.[19]
Estes anacoretas, não tendo nada a perder, não hesitavam em nenhum momento a enfrentar os juízes, mesmo à porta do pretório.
“Um deles, Macedônio, o ‘comedor de cevada’, cuja fama de asceta percorrera todo o Império, interpelou Helebico e Cesário (os dois enviados de Teodósio), que iam a caminho do tribunal, ordenando-lhes que descessem dos cavalos. E viu-se a surpreendente cena de dois altos magistrados, senhores todo-poderosos de uma cidade, cercados de uma escolta armada até os dentes, obedecerem instintivamente à autoridade moral que emanava daquele mendigo coberto de farrapos.”[20]
Não hesitou o eremita em dizer-lhes que, “se os antioquenos haviam agido mal destruindo imagens do imperador, que aliás tinham sido substituídas por outras mais belas, nem por isso o imperador, por mais imperador que fosse, tinha o direito de matar homens vivos, imagens do próprio Deus inseridas no livro da vida, que ninguém seria mais capaz de reconstituir”[21].
Juntou-se ao número dos monges todo o clero de Antioquia e das cidades vizinha, a rogos de João. Ofereciam-se todos a morrer em lugar dos presos, opondo-se tenazmente a que se continuasse com aquela horrível matança.
Por fim os legados cederam, dizendo que estavam suspensas as execuções, até voltassem da capital com instruções tomadas do Imperador. Transcorreram menos de vinte e quatro horas.
Chegou por fim o desenlace de toda a crise, o Bispo Flaviano, não sem transpor mil obstáculos, pôde apresentar-se diante do Imperador, e pronunciou o discurso preparado pelo Crisóstomo. O eixo central era apontar a glória do perdão: “É fácil ao amo castigar seus súditos rebeldes; mas é raro e difícil perdoá-los. Se o fizerdes, dareis um grande exemplo aos séculos sem fim”.
Teodósio escutou todo o discurso com vivo interesse, e iluminou-se-lhe o rosto ao ouvir suas últimas palavras, que faziam menção à passagem do Evangelho que trata do perdão aos inimigos. Na resposta, teve estas palavras: “Haverá algo de estranho quando nós, homens, perdoemos aos que nos ofenderam, homens também, quando o Senhor do mundo, depois de ter descido à terra e de se ter feito servo por nós, […] implorou ao Pai pelo bem de seus verdugos com aquela oração: ‘Pai, perdoa-lhes, porque não sabem o que fazem?’”
Decretou anistia geral, perdoando todos os acusados, e mandou devolver a Antioquia todos os seus privilégios. Esta boa notícia foi enviada a todo galope, pelo Bispo Flaviano, através de um mensageiro, à cidade do Crisóstomo; mas tardaria pelo menos seis dias para chegar.
Era o dia da Páscoa quando o mensageiro entra pelas portas da cidade. Nunca esta festa se adaptou melhor ao seu primitivo significado de ‘libertação’. A alegria transbordou por toda a cidade: ornaram-se as praças com flores, os prisioneiros libertados foram recebidos com clamores de júbilo. Os nomes que pairavam por cima de todo aquele entusiasmo eram: Teodósio, Flaviano e João. Este último aproveitou a ocasião para dar o último arremate, pronunciou um sermão onde entoou um hino de ação de graças a Deus, e não deixou de tirar uma preciosa lição de todo o acontecido.
4. Patriarca de Constantinopla
Todo este período da vida de São João Crisóstomo terminou ex abrupto, pois em 27 de setembro de 397, com a morte do Bispo Nectário, encontrou-se vaga a sede de Constantinopla. A fama de João já se espalhara por todo o Oriente. Talvez por desejar ver alguém que abrilhantasse ainda mais a Capital do império, sentado sobre o trono episcopal, é que o Imperador e todo o povo se inclinaram para aquele que já era considerado como o maior pregador do século, “mais ou menos como se quisesse transferir para lá uma vistosa obra de arte.”[22]
Entretanto, havia dois obstáculos a transpor: fazer que João aceitasse, e que o povo de Antioquia concordasse em perder seu amado pregador. O primeiro-ministro, para contornar ambos empecilhos, lançou mão de uma artimanha. Um alto funcionário do império que residia em Antioquia pediu para conversar com João numa igreja, fora da cidade. Mal haviam se encontrado, pediu-lhe o homem que subisse em sua carruagem, a fim de que ficassem mais à vontade. Chegaram a uma guarnição militar, onde se encontravam dois soldados que simplesmente raptaram o presbítero, levando-o a Constantinopla.
O patriarca de Alexandria, Teófilo, foi obrigado a sagrá-lo Bispo no dia 26 de fevereiro de 398.[23]
5. O inimigos
Imediatamente Crisóstomo pôs mãos à reforma “da cidade e do clero, que se tinham corrompido em tempos de seu predecessor”.[24]
“Aqueles que só pretendiam deleitar-se com suas formosas frases tiveram que escutar também amargas verdades sobre suas indignas ações (os Bispos e cortesãos) e suas frivolidades”[25].
Constantinopla, a outrora Bizâncio, tornara-se com o tempo, pela atenção que os Imperadores lhe prestavam, a maior, mais faustosa e desenvolvida cidade de todo o Império. Numa palavra, co-reinavam ali, o Augusto Imperador e o gozo da vida, a apetência pelos espetáculos e deleites mundanos.
Teodósio havia morrido três anos antes, deixando o Império dividido entre seus dois filhos, Honório no Ocidente, e Arcádio no Oriente. Este último era a “perfeita antítese de seu pai: de capacidades naturais nulas, intelectualmente medíocre, apagado, indeciso, pusilânime, desprovido de vontade própria, gago, mantinha sempre as pálpebras semi-fechadas, dando impressão de contínua sonolência.”[26]
Casara-se com Eudóxia, de origem germânica, de raça bárbara, embora tivesse sido educada no cristianismo pelo pai. “Como é frequente em pessoas que subiram do nada aos cumes, sobretudo quando a ascensão é das que surpreendem pela rapidez, Eudóxia, sofria uma deliciosa vertigem de vaidade”.[27]
O homem que fizera todas as manobras para que este casamento se desse chamava-se Eutrópio. Eunuco no tempo de Teodósio, conseguira aos poucos galgar posições na corte. Neste ano de 398 atingira a condição de ‘camareiro mor’, que na realidade lhe conferia poderes de primeiro ministro. Ambos consortes imperiais eram vassalos de sua vontade sem travas nem apelação. Possuía costumes morais péssimos, era insaciável de dinhiero, como sua protegida, a Imperatriz.
Foi num ambiente assim que entrou o cândido e santo João.
6. A perseguição
O santo não hesitou em empregar todos os meios possíveis para reformar seu patriarcado. Começou por sua casa: retirou todos os luxos e faustos profanos acumulados pelo predecessor, mandou vender os tesouros e aplicou em seu investimento predileto: os pobres. Mandou construir um hospital com o dinheiro obtido com a venda da tapeçaria, e assim todos os objetos e partes da casa. Vendeu até mesmo a cama, de seda e veludos, trocando-a por uma, formada com algumas tábuas, com um único cobertor, à guisa de proteção contra o frio.
Não mediu esforços em avivar a piedade dos fiéis, lutando contra os arianos; procurando corrigir o maus hábitos do clero, especialmente dos bispos, e mesmo das pessoas da corte — que de início lhe devotavam verdadeiro fervor.
Contudo a oposição atingiu seu auge em 401, quando ele depôs de seus cargos, num sínodo em Éfeso, seis bispos. Outro acontecimento que corroborou para o aumento do cerco contra o Crisóstomo foi a caída de Eutrópio, em 399, quando o Santo Bispo acolhera o fugitivo sob a proteção da Igreja, contra os ditames do Imperador, e conseguira, através de uma de suas homilias persuadir a todos que deixassem o homem em paz. Somente Eudóxia alimentou as vinganças.
Com a caída de Eutrópio “a autoridade imperial passou às mãos da imperatriz Eudóxia, quem já tinham envenenado contra João, sugerindo-lhe que as invectivas deste contra o luxo e a depravação iam diretamente contra ela e sua corte.”[28]
Contudo, o pior inimigo de São João era Teófilo de Alexandria, o qual aumentava contra ele um ressentimento, desde que o imperador Arcádio o obrigara a consagrá-lo. Esta antipatia tornou-se ódio declarado quando, em 402, foi convocado a um sínodo, presidido por Crisóstomo, a fim de responder a acusações feitas por monges do deserto.[29]
Isto só fez aumentar o ódio de Teófilo, e com a ajuda da imperatriz, decidiu-se por eliminar João de uma vez.
Convocou uma reunião de trinta e seis bispos, todos contrários ao Crisóstomo, na qual condenou ao patriarca da capital, baseando-se em vinte e um casos inventados. Depois de João ter se negado por três vezes a comparecer a tal reunião, foi declarado por eles deposto, em 403. O próprio imperador Arcádio aprovou esta condenação, desterrou o Santo, enviando-o a Bitínia.
Este primeiro desterro durou somente um dia, pois, assustada pela indignação do povo, a própria imperatriz pediu seu regresso. Crisóstomo entrou na cidade aclamado por todos, e fez um discurso jubiloso. Fez também um segundo discurso, muito elogioso à imperatriz.
Contudo, esta paz durou pouco, pois havendo passado somente dois meses, João se lamentou muito dos espetáculos e festas que se fizeram, por ocasião da ereção de uma estátua de prata, dedicada à Imperatriz, a poucos metros da Catedral. Os inimigos do prelado aproveitaram-se disto, apresentando o fato como uma afronta pessoal à soberana, a qual não fez muito esforço para esconder seu ressentimento.
Possuidor de um ânimo fogoso, João, ao ver reacender-se contra si a perseguição, resolveu passar à ofensiva. Pronunciou uma homilia onde disse tudo quanto pensava acerca de estátuas, jogos, festividades pagãs em honra de imperadores cristãos, etc. Não hesitou em dizer que após um sermão como este “já se enfurece novamente Herodíades, novamente se comove, dança de novo e mais uma vez pede a cabeça de João numa bandeja.”[30]
Os inimigos aproveitaram-se da ocasião para disferir o golpe certeiro. Como argumento acusaram-no de estar assumindo o comando de uma sede episcopal da qual já estava deposto canonicamente, por um sínodo anterior. João se defendeu, provando que dito sínodo fora herético, e que portanto seus cânones eram inválidos. O imperador não encontrou outro meio a não ser a ordem peremptória: proibição de exercer qualquer função eclesiástica, e reclusão dentro de sua igreja.
Aproximaram-se contudo as cerimônias de Semana Santa, e o Santo viu-se entre o seu dever de oficiar as cerimônias litúrgicas e não desagradar o imperador. O dever venceu, e João dirigiu-se à igreja. A notícia espalhou-se tão rápido, que antes de terminar a cerimônia, Arcádio já lhe enviara mensageiros ordenando que interrompesse o culto. O prelado mandou responder: “Recebi os poderes episcopais das mãos de Deus, e não tenho direito de abandonar a minha igreja. O seu despotismo será minha justificação diante do Juiz Eterno.”[31]
Arcádio ficou confuso, e mandou chamar outros dois bispos, inimigos de João, a fim que lhe aconselhassem em como proceder. Vendo que ele receava utilizar a força, disseram que não havia problema em lançar as tropas contra um excomungado e acrescentaram, “se nisto houver pecado, que a maldição caia sobre nossas cabeças”.[32]
Os historiadores mais antigos hesitam em narrar os sacrilégios que ali se operaram. Sabemos, pela pena de São João, que “as águas de regeneração dos homens tingiram-se de vermelho, com o sangue humano”.[33]
Cinco dias depois de Pentecostes, no ano de 404, um notário imperial informava a João que teria de abandonar a cidade imediatamente; e assim o fez. Foi desterrado a Cúcuso, na Armênia, onde permaneceu três anos. Mas estando lá, sua antiga comunidade de Antioquia dirigiu-se em peregrinação a fim de encontrar-se com seu Pastor.
Mas nem mesmo isto os inimigos de João podiam suportar. Vendo que a igreja antioquena acorria em massa, a fim de haurir o alimento espiritual dos lábios de João, resolveram-se por cortar sua vida.
Instigaram ao imperador Arcádio a desterrá-lo para mais longe, e foi enviado a Pitio, lugar selvagem na extremidade oriental do Mar Negro. Debilitado pela aspereza do caminho e por ver-se obrigado a locomover-se a pé, sob um tempo rigoroso, morreu em Comana, no Ponto, dia 14 de setembro de 407[34], “dando testemunho do Evangelho e dos indissolúveis direitos e deveres da Igreja”[35].
Somente cerca de trinta anos depois, em 438, seus restos mortais foram trazidos a Constantinopla, em solene procissão, na qual figurou o então imperador, Teodósio II, filho e Eudóxia, o qual saiu ao encontro do cortejo fúnebre. Apoiando o rosto sobre o féretro, rogava que o Santo perdoasse a atitude tomada por seus progenitores, e os danos que haviam causado.
7. Os escritos
De todos os Padres Gregos, nenhum deixou uma herança literária tão copiosa como São João Crisóstomo; além de ser o único do qual se conservam as obras em quase toda sua totalidade.
Embora tenha escrito obras variadas, e diversas cartas, sua obra é constituída de maneira predominante pelas homilias, pronunciadas por ele, tanto nas igrejas de Antioquia, como em Constantinopla. Somente da época como pregador em Antioquia, constam vinte homilias contra os arianos, oito sobre os judeus, a maioria de suas exortações morais e discursos em louvor de algum santo, principalmente São Paulo, e as seiscentas homilias em que comenta o Antigo e Novo Testamentos, entre as quais se destacam noventa sobre o Evangelho de São Mateus, e duzentas e cinquenta sobre as Epístolas paulinas.[36]
Apesar de estas homilias não se contarem entre as obras escritas, mas serem recolhidas enquanto ele pronunciava suas homilias, formam uma coleção da qual São Tomás virá a dizer depois, a seu irmão frei Reginaldo, que “não a trocaria pela cidade de Paris”.[37]
8. Sermões
A maior parte dos sermões de São João são comentários exegéticos.
Sobre o Antigo Testamento:
1. Sobre o Gênesis: se conservam duas séries, que parecem ser a obra mais antiga do Crisóstomo. A primeira série atém-se unicamente aos três primeiros capítulos do livro, parece ter sido pronunciada na Quaresma de 386. A segunda série oferece um comentário completo ao Gênesis, feita em 388. Algumas passagens, nas duas séries, são completamente idênticas.
2. Sobre os salmos: as melhores homilias sobre o antigo testamento são consideradas estas que ele fez, a respeito de 58 salmos escolhidos.
3. Sobre Isaías: conservaram-se seis homilias sobre Isaías em seu original grego; algumas pronunciadas em Antioquia e outras em Constantinopla. Há também uma série completa de comentários a todo o livro, série esta encontrada em língua armênia.
Sobre o Novo Testamento:
1. Sobre o Evangelho de São Mateus: as noventa homilias sobre o Evangelho de São Mateus representam o comentário completo mais antigo que se conserva do período da patrística sobre o primeiro Evangelho. Foram pronunciadas em Antioquia, provavelmente no ano de 390. Em várias passagens refuta os maniqueus, refutando a pretensão de que haja dois deuses, um do Novo, e outro do Antigo Testamento. Ataca também em diversas passagens ao arianismo.
2. Sobre o Evangelho de São João: em número de oitenta e oito, estas homilias são muito mais breves que as mencionadas acima; a maior parte não terá durado mais que dez ou quinze minutos; tendo sido pronunciadas provavelmente por volta de 391. Estas são de caráter mais polêmico, pois combate muito o arianismo.
3. Sobre os Atos dos Apóstolos: uma série de cinquenta e cinco sermões, é o único comentário completo dos Atos que se conservou dos dez primeiros séculos. O próprio São João nos diz que datam de seu terceiro ano em Constantinopla, ou seja, o ano 400.
4. Sobre as Epístolas paulinas: como dito acima, contam, ao todo cerca de duzentas e cinquenta homilias.
Destacam-se também as homilias que pronunciou Contra os judeus, os Discursos morais, as homilias Sobre as estátuas, Sobre Eutropio.
9. Tratados
Sobre o Sacerdócio: é a obra mais conhecida de São João, composta por seis livros.
Sobre a vida monástica: vários escritos apologéticos em defesa da vida monástica. Destacam-se os Paraeneses ad Theodorum lapsum, duas exortações ao amigo, mais tarde Bispo de Mupsuéstia, que encontrava-se enfastiado com a vida monástica, e cedera às seduções de certa mulher.
Por Lucas Garcia
[1] QUASTEN, Johannes. Op. Cit. p. 471.
[2] ARRARÁS, Félix. Op. Cit. p. 15.
[3] ARRARÁS, Félix. Op. Cit. p. 16.
[4] PALADINO, apud QUASTEN, Johannes. Loc. Cit.
[5] Panegírico de São Melécio. Apud ARRARÁS, Félix. Op. Cit. p. 17.
[6] ARRARÁS, Félix. Op. Cit. p. 18.
[7] De Sacerdotio, 1,4
[8] ARRARÁS, Félix. Op. Cit. p. 19.
[9] ARRARÁS, Félix. Op. Cit. p. 24.
[10] PALADIO, apud QUASTEN, Johannes. Op. Cit, p. 472.
[11] Cf. QUASTEN, Johannes. Op. Cit, p. 472.
[12] ARRARÁS, Félix. Op. Cit. p. 36.
[13] Cf. ARRARÁS, Félix. Op. Cit.
[14] ARRARÁS, Félix. Op. Cit. p. 42.
[15] Homilias sobre as estátuas, 3.
[16] Homilias sobre as estátuas, 2.
[17] ARRARÁS, Félix. Op. Cit. p. 45.
[18] Idem.
[19] Homilia sobre as estátuas, 17.
[20] ARRARÁS, Félix. Op. Cit. p. 4.
[21] Idem.
[22] ARRARÁS, Félix. Op. Cit. p. 51.
[23] QUASTEN, Johannes. Op. Cit, p. 472.
[24] Idem
[25] LORTZ, Joseph. Op. Cit. § 26, 10.
[26] ARRARÁS, Félix. Op. Cit. p. 55.
[27] ARRARÁS, Félix. Op. Cit. p. 56.
[28] QUASTEN, Johannes. Op. Cit, p. 473.
[29] Cf. Idem.
[30] Cf. Idem, p. 474.
[31] PALADIO. Diálogos sobre a vida de João Crisóstomo, apud ARRARÁS, Félix. Op. Cit. p. 116.
[32] Idem.
[33] Carta ao Papa Inocêncio.
[34] QUASTEN, Johannes. Op. Cit, p. 474.
[35] LORTZ, Joseph. Op. Cit. § 26, 10.
Eudóxia morrera já em 404. Engravidara por quinta vez; porém, o menino morreu-lhe no útero, e os médicos não conseguiam retirar-lhe o feto. Passou-se assim uma semana, na qual a imperatriz esforçou-se, mas em vão. E o corpo do menino, em decomposição, acabou por lhe infetar todo sangue.
[36] ARRARÁS, Félix. Op. Cit. p. 50.
[37] Apud Idem, p. 28.