Redação (25/12/2010, Virgo Flos Carmeli) No único lugar da costa brasileira onde a Floresta Atlântica se une ao Oceano, exatamente onde o Trópico de Capricórnio cruza a parte mais oriental do Brasil, está Ubatuba, cidade de cerca de 80.000 habitantes a apenas 250Km da grande São Paulo. O doce movimento das montanhas da serra, somado ao harmonioso desenho do litoral, formam 80 praias de alva areia com portos naturais encrustados por aconchegantes ilhas. Cenário mais próprio a legenda, mas que possui uma História verdadeira que se remonta aos primórdios do Brasil.
A História do litoral norte de São Paulo se inicia com a pitoresca e trágica aventura de Hans Staden. Um alemão aventureiro, mestre em artilharia, que tendo naufragado no Brasil foi capturado pelos tupinambás. Em perigo de ser devorado pelos canibais, através de muita astúcia, o pitoresco personagem conseguiu enternecer a rude índole aborígene, estabelecendo inclusive boa amizade com o cacique. Após nove meses de incertezas, em 1557, Staden pode publicar já na Alemanha a primeira narrativa de viagens à América[1]. Nesta obra, ele não faz menção a qualquer vila na região que compreenda o litoral norte de São Paulo e sul do Rio de Janeiro; somente a partir da segunda metade do século XVI, aquela bela região passou a chamar-se Iperoig que, significa “águas que têm tubarões”. Estabeleceu-se lá uma pequena aldeia, não possuindo mais que algumas cabanas indígenas e canoas estacionadas em suas doces baías. Esta é a origem do nome atual de Ubatuba, que em tupi significa “muitas canoas”.[2]
Entretanto, Ubatuba foi o cenário para o lance talvez mais dramático da História do Beato José de Anchieta e do Padre Nóbrega no Brasil. Naquele tempo, o Brasil não era possuído na íntegra por Portugal. Os franceses ocupavam a atual região do Rio de Janeiro, chamada de França Antártica. Os mairs, como os índios denominavam os franceses, incentivaram os aborígenes a constituir a Confederação dos Tamoios chefiadas por Cunhambebe Pai, contra os portugueses.
Apesar de nunca ter acontecido um conflito direto, em 1563, após frustradas tentativas de conciliação entre lusos e indígenas, as autoridades pediram a intervenção da Igreja, que por causa de seu labor assistencial e evangelizador, era simpática às populações nativas. Para mediar as tratativas, foram escolhidos dois jesuítas de escol, Padre Manuel Nóbrega e Bem-aventurado José de Anchieta. Contudo, o objetivo não foi alcançado sem grandes sacrifícios.
Imagine, leitor, dois doutos europeus que estudaram nas mais famosas universidades ibéricas do século XVI, tendo-se destacado nos meios intelectuais por erudição e nos meios religiosos por virtude, adentrar-se no Brasil daquele tempo, selvagem, inóspito, cheio de feras e índios antropófagos… Somente a obediência religiosa explica que dois religiosos se entregassem como reféns alegres e abnegados nas mãos de canibais. Conseguindo as graças do tamoio Coaquira (ou Pindobuçu[3]), Anchieta pode celebrar em uma rústica e pequena Igreja, onde atualmente se encontra um cruzeiro, a primeira missa em Ubatuba, na presença de índios curiosos e reverentes. O jesuíta ministrava aos nativos rudimentares conhecimentos de higiene e recato, assim como de catequese. Todavia, ainda não podia batizá-los por causa da fragilidade de sua perseverança na Fé.
Anchieta e Nóbrega estiveram sujeitos a alimentar-se da comida dos silvícolas, a rasgar seus pés nos caminhos, sofrer frio, vigílias ao relento. Por seis vezes viram-se prestes a ser tragado pelas índias tupis nos bacanais antropófagos. Cunhabembe, chefe da confederação dos Tamoios, tentou matá-los várias vezes, e só não realizou seu intento, pela proteção que seu próprio filho, afeiçoado à santidade dos dois jesuítas. Além disso, por ajudar os índios nas dores físicas e espirituais, os religiosos conseguiram obter grande influência sobre os aborígines. Certa vez, na ausência de seus protetores, o chefe dos tamoios viajou a Caraguatatuba a fim de eliminar os dois jesuítas e, consequentemente, qualquer tratativa de paz. Avisados pelos índios que já se inclinavam ao cristianismo, Anchieta pôs-se em fuga pelas íngremes colinas de Ubatuba carregando às costas o doente Pe. Nóbrega. Quem diria que o destino do primeiro superior da missão jesuítica na América, celebre personagem das Universidades de Coimbra e Salamanca, estava nas mãos de um jovem religioso alquebrado… Após terem atravessado inclusive um rio, encontraram uma cabana indígena depauperada pelo tempo[4], na qual os dois jesuítas, ainda ofegantes e molhados, se abrigavam sob a proteção de Coaquira (Pindobuçu) e do filho de Cunhabembe[5].
Mais grave que os perigos físicos eram os riscos espirituais a que os dois jesuítas estiveram sujeitos. Após o Pe. Nóbrega ser devolvido aos portugueses, o Pe. Anchieta, chamado carinhosamente pelos indígenas de Pajé-guaçu – grande Pai – permaneceu seis meses sozinho entre os índios. Os costumes morais, como a completa nudez e luxúria dos nativos, assim como atitudes provocantes de impudicícia de certas índias, constituíam situações comprometedoras ao celibato prometido pelo jovem clérigo. Nestas ocasiões, Anchieta despedia as índias com suavidade para não lhes causar ressentimentos e para distrair-se das tentações contra a virtude angélica, retirava-se às magníficas praias locais, prometendo a Nossa Senhora que caso conservasse a santa virtude, comporia em versos a vida da Santíssima Virgem.
Narra a História, que enquanto escrevia o poema nas areias de Ubatuba, uma avezinha de lindas cores pairava a seu redor, não hesitando inclusive em pousar-lhe sobre os ombros ou nas mãos[6]. Após três meses de solitário cativeiro, Anchieta compôs de memória, o “Poema à Virgem”, uma das primeiras peças literárias da cultura luso-brasileira com 5.800 versos em latim[7].
Anchieta foi um dos maiores homens da História do Brasil, não apenas por fazer a primeira Gramática em língua Tupi, o primeiro poema épico da América, “De gestis Mendi de Saa”, a fundação da cidade de São Paulo (1554), hoje uma das maiores e mais ricas metrópoles do mundo.
Graças ao trabalho do jesuíta, no dia 14 de setembro de 1563, dia da Exaltação da Santa Cruz, obteve-se a unidade entre portugueses e indígenas. Após tormentos sem conta realizou-se a cerimônia de paz diante do grande cruzeiro erguido em Ubatuba, podendo assim Anchieta voltar para São Vicente na canoa de Cunhabembe. Chegando à Ilha que hoje tem seu nome, Anchieta foi interceptado por índios que através de calúnias procuravam dissuadir o chefe tamoio de estabelecer a paz com os portugueses. Entretanto, o cacique preferiu aderir aos anseios pacíficos do Apóstolo do Brasil. Nesta bela ilha, sem papel nem tinta, se estabeleceu o primeiro tratado de paz da Américas[8]. Beato Anchieta nunca mais voltaria àquele panorama, mas recordava com saudade os sofrimentos e as consolações que a providência o glorificou nas terras e mares de Ubatuba.
É verdade que se compararmos cada pormenor de Ubatuba com acidentes geográficos de outras partes do mundo hesitaríamos em responder o que seria mais atraente. Contudo, existe em Ubatuba, algo de peculiar e que, talvez, não exista em outra parte do Brasil e do mundo. Naquele lugar que evoca a presença do Apóstolo do Brasil, Deus reuniu as belezas do mar, a grandeza das montanhas, o verdejante das florestas, o cristalino das cachoeiras, a exuberância da fauna e o pitoresco das ilhas. Com encanto especial, aquela paisagem sintetiza em sua simplicidade o esplendor da natureza brasileira. Rico panorama na qual Aquele que morreu por nós na Santa Cruz, quis que pairasse a benção de heróis que compraram a unidade e a grandeza do Brasil.
Marcos Eduardo Melo dos Santos – 2º Ano Teologia
[1] STADEN, Hans. Duas viagens ao Brasil. São Paulo: Ed. da Universidade de São Paulo, 1974. 218 p.
[2] OLIVEIRA, Washington de. Ubatuba. Documentário. São Paulo: Escritor, 1977. p. 32-40.
[3] Os nomes variam conforme o Livro. Na obra publicada pela Artpress, o autor se abstem de identificar os personagens indígenas.
[4] Na Praia Rio grande ou da Barra, em direção ao Morro do Padre ou do Matarazzo.
[5] Os nomes variam conforme o Livro. Na obra publicada pela Artpress, o autor se abstem de identificar os personagens indígenas.
[6] Cf. SAINTE-FOY, Charles. Vie du vénérable Joseph Anchieta de la Compagnie de Jésus. Paris : Casterman, 1858.
[7] Nota do Editor apud ROPS, Daniel. A Igreja Da Renascença e da Reforma 2. T. VII. São Paulo: Quadrante,1999. p. 302.
[8] Cf. ROCHA POMBO. História do Brasil. t. 1, 13 ed. São Paulo: Melhoramentos, 1966.